Eu tentei me limitar a escrever apenas a review do filme em si. Mas não consegui evitar tocar nos assuntos espinhosos que a produção traz à tona. Se você não tiver interesse em ler toda essa longa introdução, eu vou entender. Pula direto para o subtítulo Thriller catártico e comédia de humor ácido que é quando começa efetivamente a review do filme.
Ah, contém spoilers 😉
“É o pior pesadelo de qualquer cara: ser acusado dessa forma.”
“Você consegue imaginar qual é o pior pesadelo de uma mulher?”
Várias sentenças, todas igualmente execráveis e que compreendem verdadeiros lugares comuns da misoginia, me vieram à cabeça enquanto assistia Bela Vingança. Muitas delas acabam sendo proferidas ao longo da narrativa, outras são ilustradas com exatidão. O filme de Emerald Fennell, badalado nessa temporada de premiações, aponta o quanto o machismo é destrutivo e afeta as mulheres de inúmeras formas. Além da conivência generalizada diante da conduta de homens babacas, a sociedade é tão fundamentada em uma estrutura patriarcal, com “valores” misóginos tão enraizados, que algumas mulheres até mesmo repetem chavões machistas dolorosos de se ouvir, sem a mínima noção ou consciência de que essa repetição só prejudica a elas mesmas. A nós mesmas.
Todas as mulheres são vítimas do machismo, pois ainda que muitas delas não tenham sofrido nenhuma espécie de abuso físico ou psicológico por parte de parceiros, maridos, amigos, médicos, professores, chefes, colegas de trabalho, desconhecidos na rua ou no transporte público, podem acabar por reproduzir discursos misóginos por serem coisas que se acostumaram a ouvir desde sempre. Você deve ser uma boa garota, não beber, não se colocar em posição vulnerável, pois garotos são apenas garotos e vão se aproveitar de você.
O que quase ninguém nos diz e que deveria ser dito é a verdade: Nada disso significa que homens têm passe livre para fazer o que quiserem. E uma mulher que sai para se divertir e beber, só quer se divertir e beber. Jamais está pedindo para ser abusada.
E tem gente que ainda pergunta para que serve o feminismo…
O tal do machismo estrutural
O diálogo que abre esse texto, presente no ápice da produção, é sintomático. Um homem com uma acusação de estupro, não raramente, sai ileso da situação. Muitas vezes, a acusação é até desacreditada (ele não faria isso!). E, assim, ele prossegue normalmente com a sua vida, sem grandes manchas na reputação e colhendo os louros de seu árduo trabalho. A mulher tem a vida destruída pelo vazamento de um vídeo, algumas fotos íntimas, pelo ato sexual em si… É surreal a facilidade e rapidez com que ocorre a reintegração de um homem e a ruína de uma mulher.
Infelizmente, desde que se começou (recentemente, convém dizer) a se falar e apontar o machismo estrutural, pouca coisa, de fato, mudou. Ao invés de se reverter o quadro, o que aconteceu foi um infeliz efeito inverso. O tal do machismo estrutural tem sido usado constantemente como muleta, desculpa esfarrapada para justificar comportamentos e falas misóginas. O que contribui para apresentar o homem também como um refém da situação, alguém que não fez por mal. Ele também é uma vítima do machismo estrutural, acostumado a ouvir desde pequeno, da parte do pai e do avô, um comentário sexista. Nunca lhe foi sinalizado que determinada conduta é errada e misógina. Desse modo, eles pedem desculpas pela fala e pelo gesto infeliz, mas pouco fazem efetivamente para corrigi-los. Se reincidir no erro, só usar como pretexto o machismo estrutural. É como dizem por aí: desde que se inventaram as desculpas, nunca mais ninguém morreu.
Embora não concordemos, podemos até fazer um esforço para entender que alguns desses comentários partiram desse machismo institucionalizado e entranhado na sociedade que faz com que alguns os repitam até mecanicamente. Mas outras tantas atitudes não podem ser justificadas com machismo estrutural. Não é possível que um ser humano em sã consciência e com um mínimo de dois neurônios em funcionamento, não saiba que está não apenas errando como cometendo um crime ao tocar em uma mulher sem seu consentimento, ouvir “não” e pedidos desesperados para parar e mesmo assim prosseguir, violar uma mulher embriagada e pedir para os amiguinhos assistirem e filmarem enquanto estupra uma garota inconsciente. Não dá para justificar esses atos com o card do machismo estrutural. Não dá para acreditar que alguém não perceba o quão errado, problemático e criminoso é esse tipo de comportamento. Mas é assim que muitos tem se defendido de uns tempos pra cá.
“Era jovem, estava bêbado, passei dos limites com você porque ninguém me disse que era errado, era só uma brincadeira e você não soube encarar como tal”
Como se não coubesse à mulher, e apenas à mulher, determinar quando é violência e quando é brincadeira).
E isso tudo passa.
Mas quando a mulher diz que bebeu um pouco além da conta: ela se colocou nessa situação, pediu para ser abusada.
O que alguns chamam de machismo estrutural, na verdade, é cultura do estupro.
O cara legal…
Ninguém desconfia. Ele frequenta sua casa, é querido por sua família, um universitário dedicado, um excelente profissional. Carismático, possui centenas de amigos, integra e transita por diferentes círculos sociais, sempre sendo o cara gentil e divertido.
E, sim, ele também pode ser um abusador. Pois não existe perfil de assediador ou estuprador. Nada que o diferencie dos não abusadores. Às vezes, o abuso e a violência partem de quem menos se espera… Do cara legal, do popular, do gente boa, do jovem mancebo que vai se casar dentro de alguns dias, do pediatra good vibes…
Thriller catártico e comédia de humor ácido
É com essa embalagem que Bela Vingança aborda todos esses tópicos sobre os quais discorri acima: machismo estrutural, cultura do estupro, e o abusador com estampa de cara legal. Aliás, o filme contém spoilers no título em português. Originalmente intitulado Promising Young Woman, a produção é o début de Emerald Fennell como cineasta e já conquistou um feito inédito! É a primeira vez que uma realizadora concorre ao Oscar de Melhor Direção com um filme de estreia. Além disso, o longa coleciona inúmeras indicações, teve sua atriz principal, Carey Mulligan, já altamente premiada nesta temporada e vem causando discussões e burburinhos pelas redes sociais e dentre especialistas do ramo da sétima arte.
Híbrido de suspense com comédia ácida, Bela Vingança acompanha a missão de Cassandra Thomas (Mulligan, fantástica!) em vingar sua amiga, vítima de violência sexual na época em que ambas cursavam a universidade. Cassie parecia uma jovem promissora no passado. Estudante de medicina e uma das melhores de sua turma, largou o curso após um evento traumático e, ainda remoendo o luto, resolveu se conformar e se punir a uma vida, digamos, medíocre. Na idade adulta, na casa dos 30 anos, ainda mora sob o teto dos pais e trabalha como atendente em um café, sem perspectivas de mudança e sem grandes ambições na vida. À noite, ela encara uma personagem: uma mulher vingativa que atua como vulnerável em baladas e outros lugares que são verdadeiros chamarizes (ou escoadouros) de homens babacas.
Seu teatro é tão convincente que muitos mordem a isca. Acreditando que ela está embriagada, sem telefone, sem amigos por perto para levá-la para casa, a conduzem a algum lugar mais reservado e revelam suas verdadeiras intenções. É quando Cassie se despe do personagem e veste o manto de vigilante, dando lições nos boys lixo que cruzam seu caminho.
A vingança contra os homens surge de um trauma pessoal, mas há algo de impessoalidade e distanciamento de si mesma em seu plano, visto que seus alvos são todos homens desconhecidos. Ela não está fazendo isso por ela ou pela sua amiga. Está fazendo por todas.
As coisas mudam de figura em sua vida, quando um personagem do passado ressurge em seu caminho trazendo novidades dos antigos colegas. O agressor de sua amiga, Al Monroe ( Chris Lowell), está de casamento marcado e uma ex-amiga da faculdade, Madison (Alison Brie) agora é uma exemplar dona de casa, mãe de gêmeos. Em uma rápida pesquisa nas redes sociais, Cassie vê um comentário da ex-amiga parabenizando o agressor pelo futuro enlace. Todas as feridas do passado são reabertas. E é quando sua vingança se torna exclusivamente pessoal e atinge seu ápice.
Bela Vingança é um filme de estreia surpreendente, com uma premissa instigante e roteiro bem engendrado. Há algumas coisas que soam forçadas na trama e passagens que são pouco convincentes. Mas até é possível fazer concessões, considerando que se trata de um produto de ficção, especialmente por ser tipificado como um thriller de humor ácido. É interessante a forma como o texto utiliza os clássicos do machismo estrutural e os subverte. E lá pelas tantas, ainda apresenta um plot twist no melhor estilo M. Night Shyamalan, mas que o espectador mais atento é capaz de desvendar nas entrelinhas, de captar no ar a partir de algumas pistas espalhadas pela trama, momentos antes da revelação.
O longa de Fennell impressiona até mesmo nas escolhas estéticas e em aspectos que são considerados puramente cosméticos. Ora abusando de uma paleta colorida, ora se rendendo ao tom sombrio e à presença inexorável do vermelho vivo e pungente, é justamente o uso das cores o elemento que conduz à quebra de expectativa.
A sequência que abre o filme evoca uma atmosfera psicodélica. Mulligan surge na tela com maquiagem carregada e borrada e figurino sexy. Nas demais cenas em que executa seu plano de vingança, desfila com outros modelitos curtos, justos e fatais. Em sua versão mais romântica, quando decide tentar viver um relacionamento e dar uma chance para o seu afeto, lança mão de vestidos “comportados”, longos, soltos e com estampas florais. Os tons fake dos aesthetic das redes sociais – cores combinando e feeds organizados – colorem as cenas, mas deixam o espectador de sobreaviso: o mundo dos unicórnios com um eterno arco-íris cortando o céu não passa de mera fantasia. E o público precisa se lembrar disso.
Outro recurso utilizado de maneira inteligente é a trilha sonora. A escolha das músicas que a compõem é cirúrgica e precisa, pois não apenas corroboram, como acrescentam à narrativa. As vozes melodiosas das Spice Girls surgem cantando sobre um momento que deveria ser doce e belo na vida de todas as mulheres em Two Become One. Brincando de cantora, Paris Hilton marca presença na soundtrack, interpretando uma canção romântica e dançante. E a cereja no topo do bolo é uma poderosa versão instrumental de Toxic, sucesso na voz de Britney Spears, no início dos anos 2000, que antecede o ápice da produção.
Convém lembrar que Paris Hilton teve um sextape vazado e Britney foi e continua sendo alvo do machismo da indústria fonográfica. Basta assistir ao comentado documentário recente, Framing Britney Spears, e ver a forma como seu ex-namorado, o garoto dourado Justin Timberlake, saiu do relacionamento sem ranhuras em sua imagem e com a aura de coitadinho que o ajudou a vender discos, enquanto Britney foi massacrada por tabloides, colegas de ramo e fãs.
Há sim entrechos problemáticos e decisões de roteiro com as quais não se tem como concordar. Ao explorar toda a verve psicopática da protagonista, incomoda como seus atos, por vezes, soam como erros para reparar outros. Além disso, o objetivo de Cassie é dar lições em homens babacas para que eles nunca mais voltem – sequer pensem – a se aproveitar de uma mulher em um instante vulnerável, mas na maior parte do tempo, a trama se ancora em elipses – sabemos que ela cumpriu com seu plano, mas raras vezes isso é mostrado. Em contrapartida, ganham maior tempo de tela as cenas em que Cassie se vinga das mulheres de seu passado que desacreditaram sua amiga e defenderam o seu colega agressor, partindo da máxima: e se fosse com vocês? Ou com sua filha? Como vocês reagiriam? O que nos leva a refletir: bem, isso não é sororidade… O desfecho perturbador pode desapontar muitos, mas de maneira até mesmo positiva (contraditório, eu sei).
Mas, como observado alguns parágrafos acima, desde que se faça alguma vista grossa, e levando em consideração que se trata de um suspense recheado de humor sombrio, é possível sim comprar a ideia. Catártico, tecnicamente notável e discutindo pautas importantes, ainda que de maneira exagerada e, por vezes, absurda, de uma coisa ninguém pode acusar Bela Vingança: de falta de originalidade, o enredo não sofre.
“Eu sou um cavalheiro!”
“Você ficaria surpreso ao saber que ‘cavalheiros’, às vezes, são os piores.”
★★★
Andrizy Bento
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