Judas e o Messias Negro

Logo no início, uma informação surge na tela: “baseado em eventos reais”. Então, o filme de Shaka King utiliza como ponto de partida um registro real – uma entrevista concedida por William O’Neal, em 1989, como parte da série documental Eyes on the Prize II: America at the Racial Crossroads 1965–1985, sobre o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, veiculada originalmente na emissora de televisão americana PBS. A forma como Shaka King opta por abrir seu filme evidencia,  desde esses primeiros momentos, o caminho convencional que a cinebiografia pretende seguir; sem grandes surpresas ou inovações no que tange à estrutura dramática, sendo um tradicional filme baseado em fatos, inclusive respeitando a cronologia dos acontecimentos e assumindo um caráter linear.

Isso não necessariamente afeta a qualidade do produto final. Judas e o Messias Negro desponta como um longa extremamente necessário no contexto sócio-político atual, não apenas por discorrer sobre temas altamente relevantes como o racismo, violência policial e a arbitrariedade do sistema (pautas que também ganharam destaque em outros filmes da temporada como Uma Noite em Miami e Os 7 de Chicago), mas também devido à grande desinformação popular com relação ao partido dos Panteras Negras.

Shaka King é feliz ao trazer à tona os ideais e motivações que levaram um grupo de jovens afro-americanos a iniciar um movimento de combate ao abuso policial contra negros nos Estados Unidos e, posteriormente, organizar um partido, bem como ao explorar a intimidade de alguns de seus membros, colocando em foco facetas de suas personalidades por detrás dos uniformes, com especial destaque para o ativista e revolucionário Fred Hampton (Daniel Kaluuya) com sua excelente oratória em público, mas acentuada timidez em suas relações pessoais.

Entretanto, o cineasta incorre no erro de envolver o personagem em uma aura mítica na maior parte do longa. O acesso ao lado humano do biografado fica um tanto obscurecido na ânsia de projetar o ícone Hampton na tela, tanto no que concerne ao texto quanto nas escolhas estéticas – no que se refere a ângulos e enquadramentos que fazem questão de torná-lo colossal em cena. Outro dos tropeços de King está na indecisão do texto em qual personagem e qual história priorizar. De um lado, temos Fred Hampton, de outro o traidor, William O’Neal, no filme interpretado por Lakeith Stanfield, (e cuja cena documental do início transmite a impressão equivocada de que ele será o grande foco), o que constitui uma das deficiências estruturais da produção e um de seus principais desacertos.

O título parte de um paralelo bíblico. Hampton, com sua benevolência, poder de persuasão, capacidade de liderança e o desejo de ajudar aos desassistidos, alvos da desigualdade social e da truculência policial, é o Messias. William O’Neal, infiltrado nos Panteras Negras a mando do FBI, é o Judas. Porém, o nome do longa sugere que ambos dividem o protagonismo. O que não acontece. Há uma dificuldade evidente do texto em trabalhar os plots de ambos paralelamente e de maneira balanceada. Quando um personagem entra em foco, o outro desaparece, resultando em um desequilíbrio. São dois filmes em um, porém, nenhum deles atinge o potencial devido. Daí compreendemos a suposta confusão da Academia nas indicações às categorias de atuação no Oscar 2021.

Judas e o Messias Negro se situa em 1969. Após a morte dos dois líderes dos movimentos pelos direitos civis, Malcon X e Martin Luther King, Fred Hampton entra em cena visando a união, a visibilidade e o poder dos grupos minoritários, ascendendo no movimento dos Panteras Negras, tornando-se o líder do grupo no estado de Illinois. Com apenas 20 anos, ao lado de Bobby Seale, cofundador do Partido dos Panteras, e Huey P. Newton, lutava pelos direitos dos negros nos EUA, concentrando-se em Chicago. 

Obviamente, seus atos não passaram despercebidos pelo FBI. O primeiro diretor do departamento, J. Edgar Hoover (aqui interpretado por Martin Sheen sob pesada maquiagem e com um tom altamente vilanesco), não vê com bons olhos a ascensão da comunidade negra, classificando Hampton como a principal ameaça à segurança interna do país. Assim, designa o agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) para conduzir uma extensa investigação acerca dos Panteras Negras na tentativa de neutralizar as atividades do grupo a que consideram subversivo. 

Mitchell encontra na figura de William O’Neal a isca perfeita para a execução de seu plano. Bill aventurava-se roubando carros, lançando mão de um disfarce – munido de um distintivo, fingia ser um agente do FBI quando foi interceptado por agentes de verdade. É assim que Mitchell surge em seu caminho com uma proposta. Para não ser preso, deve infiltrar-se nos Panteras Negras, agindo como informante do FBI e aproximando-se o suficiente de Hampton a ponto de sabotar os atos do grupo e espionar os movimentos de seu líder.

A questão é que, em dado momento, Bill parece realmente simpatizar com o personagem defendido por Kaluuya, envolver-se com as atividades do partido e vestir de modo convincente o uniforme dos Panteras e o disfarce de militante. Stanfield faz um excelente trabalho ao se mostrar ambíguo, mas não deixa de aparentar uma fragilidade do texto ao não se aprofundar nessa questão – se Bill realmente se sentiu seduzido pelos ideais do partido ou se seus passos eram todos calculados e ele apenas atuou em prol da manutenção de sua liberdade.

Supostamente, a ideia do longa assinado por Shaka King (que assume os créditos de diretor e corroteirista), coproduzido por Ryan Coogler (o diretor do Pantera Negra da Marvel) era apresentar a história de Hampton a partir da perspectiva de William O’Neal, daí a grandiosidade concedida à Kaluuya pelas lentes e movimentos de câmera. Mas o protagonismo do filme jamais é bem demarcado. Ao invés de dividirem a honra, temos uma impressão desconcertante de que um é coadjuvante do outro. Kaluuya ganha mais impacto, porém, por mérito de sua própria atuação. Não desmerecendo a interpretação de Stanfield, muito longe disso, mas ele parece se resignar a um posto auxiliar quando Kaluuya toma a tela, como uma questão de reverência mesmo ao Messias do título.

Por falar nisso, Judas e o Messias Negro se excede em seu tom reverente – especialmente quando os inflamados e poderosos discursos de Fred Hampton ganham destaque. A montagem de Kristan Spague nunca foge da estrutura convencional das cinebiografias, inclusive na inserção das imagens de arquivo, mas é bem-sucedida em garantir dinamismo à trama, jamais permitindo que a produção se torne enfadonha (um risco que produtos do gênero tender a correr com mais assiduidade do que ficções).

Contudo, a fotografia constantemente sombria de Sean Bobbitt (apesar dos demasiados ângulos engrandecendo Hampton) é repleta de méritos , com a construção de fotogramas impactantes – destaque para a sequência em que a polícia cerca a sede dos Panteras Negras, muito bem conduzida, e a cena retratando a execução de Hampton pelo FBI, que traz sua companheira, a revolucionária Deborah Johnson (Dominique Fishback), para o primeiro plano, concentrando-se em sua expressão (são sutis as transformações em seu semblante).

Grávida de Fred, Deborah ouve o disparo acontecer atrás de si, antes de ser conduzida para fora pelos agentes, presenciando, sem uma olhada por cima do ombro, seu parceiro desacordado ter a vida ceifada de maneira atroz e covarde na cama que dividia com ele. A impotência de Deborah diante de um cenário ao qual ela não tinha nenhuma possibilidade de reagir é, de longe, a escolha estética mais acertada do filme, não apenas transmitindo ao espectador, como fazendo com que este experimente de fato a sensação de inércia e a revolta silenciosa diante de tamanha covardia. 

Na tela, ao longo da projeção, vemos retratada uma Chicago composta por uma paleta de cores frias e foscas, com sombras potencializadas pela cinematografia em consonância com a direção de arte, tornando o ambiente opaco, soando como um registro antigo – algo que sintoniza de maneira interessante com o texto, mas sem dar ao filme um ar documental ou fazer com que este soe datado. É um momento da história que nos faz refletir sobre questões atuais e as poucas mudanças apresentadas ao longo do tempo. Perfeita reconstituição de época, dos cenários aos figurinos, passando pela maquiagem, que só vacila mesmo na transfiguração de Sheen. 

A combinação de todos esses elementos com a poderosa trilha sonora composta por Craig Harris e Mark Isham, confere um clima de tensão inerente à quase totalidade da metragem. Ótimo ao trazer ao centro do debate os reflexos históricos da luta dos Panteras Negras e jamais enfadar o espectador ao dramatizar uma história real, com pinceladas de ficção e algumas poucas licenças poéticas, Judas e o Messias Negro é um bom filme, mas que não atinge a mesma grandiosidade de seu biografado. Curioso, pois trabalho de câmera busca transmitir isso com afinco, porém, o objetivo não é alcançado devido a algumas falhas estruturais do enredo.

★★★

Andrizy Bento

Uma consideração sobre “Judas e o Messias Negro”

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