Enola Holmes

“Você não sabe o que é não ter poder. Não se interessa por política. Por quê? Porque não tem interesse em mudar um mundo que o favorece tanto.”

Esse é o diálogo mais assertivo de Enola Holmes, longa dirigido por Harry Bradbeer, baseado na série literária homônima de autoria de Nancy Springer e disponível na Netflix desde sua estreia, em 23 de setembro deste ano. Embora a trama seja ambientada em 1880, em plena Era Vitoriana – quando a mulher se restringia aos papéis de esposa e mãe e era encarregada unicamente das tarefas domésticas – a fala, proferida pela personagem Edith (Susan Wokoma) e dirigida a Sherlock Holmes (desta vez personificado por Henry Cavill), não deixa de estar alinhado ao contexto atual; aos discursos que exaltam maior participação e representatividade feminina em espaços diversos. 

Pois é. Ainda não chegamos lá.

Em suma, é exatamente isso que a produção apregoa em suas duas horas de duração. A aposta da Netflix, que é alvo de disputa judicial devido a questões de direitos autorais*, investe em uma personagem feminina carismática e destemida que foge completamente do arquétipo da donzela em apuros. Enola Holmes se destaca como uma ode à independência feminina sem soar panfletário. Muito pelo contrário, trata-se de uma aventura leve e divertida sem contraindicações.

Após o desaparecimento de sua mãe, Eudoria (Helena Bonham Carter), no exato dia de seu aniversário de 16 anos, Enola decide contatar os irmãos mais velhos: o intrépido e afamado detetive Sherlock Holmes e o arrogante e machista Mycroft Holmes (Sam Claflin). Uma vez que Sherlock é brilhante e imbatível em seu ofício, Enola está segura de que ele é a pessoa mais indicada para resolver o mistério do sumiço de sua mãe. No entanto, para a decepção da moça cujo nome de trás para frente é Alone (sozinha), o plano de Mycroft é encaminhá-la a um internato para meninas onde vão ensiná-la a ser a esposa e mãe ideal. Sherlock, por sua vez, não mostra nenhuma resistência ou crítica a isso. Assim, Enola resolve arregaçar as mangas e se virar sozinha como seu nome sugere. Tendo herdado o faro detetivesco do irmão e sido criada unicamente pela mãe que a ensinou a ler, pintar e, sobretudo, lutar, ela persegue pistas certeiras que podem levá-la ao paradeiro de Eudoria. Durante sua fuga para Londres, no trem, ela conhece um garoto que pode ser a chave para uma importante reforma política e que, por isso mesmo, está sendo alvo de uma perigosa conspiração.

Millie Bobby Brown defende sua protagonista com destreza e prova realmente ser uma grande atriz. Embora bem coadjuvada por um charmoso e interessante elenco composto de grandes nomes, é ela quem brilha, segura o enredo e carrega o filme nas costas. Millie assume com uma segurança impressionante o tipo aventureiro com espírito desbravador que sua personagem exige, totalmente convincente como uma adolescente que não teme o perigo e se arrisca sozinha para conseguir o que quer.

O restante do elenco, apesar de não oferecer muito, cumpre bem sua parte, mas sem grandes destaques. O carismático Viscounde Lord Tewksbury, interpretado por Louis Partridge, limita-se a ser o sidekick de Enola e interesse romântico da protagonista (papel que coube a tantas personagens femininas ao longo dos séculos). E o Sherlock de Cavill é nada mais do que correto. 

Apesar de elogiado pela crítica, o que garantiu uma alta pontuação, de 91% no Rotten Tomatoes (site especializado em agregar reviews publicadas em portais renomados sobre filmes em séries), a produção não escapa de algumas falhas. Além dos personagens que ficam à sombra de Enola, o longa não deixa de ser um tanto superficial. Embora protagonizado por uma personagem feminina forte e inteligente e tratando de questões como a igualdade entre os gêneros, o enredo não se aprofunda tanto nesse debate, dando foco mesmo à aventura e ação. Também não ousa muito no que concerne ao visual; a direção de arte é bastante eficiente, com figurinos e ambientação corretas e as sequências de luta são bem filmadas, mas nada que realmente impressione. É um tanto incômoda a constante quebra da quarta parede, quando a personagem fala diretamente para a câmera. Isso tira um pouco o espectador dos trilhos e do clima do filme e se mostra um artifício desnecessário na maior parte do tempo, que não faria falta se simplesmente não estivesse lá.

De positivo, o longa apresenta uma montagem dinâmica e frenética que garante um bom ritmo, impedindo que a narrativa se torne enfadonha e que o espectador deixe escapar algum bocejo durante a sessão. Bem eficiente, a cinematografia explora com sabedoria os espaços em que a ação ocorre, fazendo com que as peregrinações de Enola sejam sempre divertidas e interessantes de se acompanhar. Trata-se, portanto, de um entretenimento leve e descontraído e um ótimo jeito de se passar umas duas horas.

*A família Conan Doyle moveu um processo contra o serviço de streaming Netflix e a escritora Nancy Springer por infração de direitos autorais. Os autores do processo alegam que, ainda que o personagem criado em 1887 esteja em domínio público desde 2014, Enola Holmes faz parte da safra de contos produzidas por Sir Athur Conan Doyle entre os anos de 1923 e 1927, que apresentavam um Sherlock Holmes empático, capaz de sentir emoções, diferentemente daquele criado antes da 1ª Guerra Mundial, que era mais frio e cerebral. Portanto, a versão pós-conflito do personagem ainda está protegida por direitos autorais por ter sido repaginado. Lembrando que os herdeiros do espólio de Conan Doyle já moveram uma ação judicial contra a Miramax em 2015 por conta do filme Mr. Holmes, com o mesmo argumento, de ser uma versão ainda protegida por direitos autorais.

Andrizy Bento

Uma consideração sobre “Enola Holmes”

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