Geralmente, na ficção científica, vemos o futuro à beira do colapso, da destruição total, ou o pós-apocalipse. A sociedade procurando se reestruturar depois da queda. Psycho-Pass, no entanto, retrata um futuro que procura evitar o caos, condicionando o humor, o estado de espírito e a natureza das pessoas a um sistema que tem por objetivo inibir a violência; castrando emocionalmente seus cidadãos por meio de uma avançada inteligência artificial.
De modo a prevenir ocorrência de crimes em um futuro próximo, o sofisticado Sistema Sybil identifica os níveis de stress do ser humano ao escanear as mentes das pessoas em vias públicas. Se, por acaso, um circunstante apresentar um índice de fúria muito alto ou propensão à vingança – ainda que por uma mera questão de ciúmes – o sujeito é imediatamente subjugado, isolado e privado da liberdade e convivência com os demais. Dependendo do caso, o indivíduo recluso tem direito à reabilitação, sendo assistido por terapeutas que procuram reverter esse panorama e normalizar seu coeficiente criminal (valor dado numericamente que indica a probabilidade em cometer ações criminosas). Outros, com menos sorte, são considerados irrecuperáveis, sem chance de retornar à convivência em sociedade. Desse modo, é melhor que sua paisagem mental esteja sempre calma e limpa. Como a da protagonista, Tsunemori Akane.
Além de atuar na prevenção de crimes, o Sistema Sybil também indica o melhor caminho a ser seguido por cada indivíduo. Em uma sociedade rigorosamente estruturada, a Inteligência Artificial determina até mesmo as carreiras profissionais de cada um. Por meio de amplos testes, o sistema avalia se a pessoa possui uma maior inclinação para as artes ou para o serviço público, por exemplo. A história de Tsunemori Akane começa a ser contada a partir daí, pois suas notas são tão altas que a ela é concedido um raro privilégio: escolher a profissão que quiser. Os testes indicam que ela é a mais apta e capaz dentre todos os habitantes para desempenhar a complexa função de agente de Segurança Pública. É lá que ela se depara com os Executores, uma equipe incomum composta de agentes com elevados coeficientes criminais.
Utilizados para o trabalho sujo dentro do departamento, os chamados Cães de Caça não carregam essa denominação pejorativa à toa. Alguns já foram inspetores, outros eram civis comuns cujos coeficientes criminais foram às alturas devido a alguma situação extremamente estressante, e que jamais voltaram ao normal. Forçados a escolher entre duas opções – a reclusão pelo resto de seus dias ou utilizarem suas aptidões para o crime em prol do governo, atuando como Executores – decidiram, por fim, se unir aos investigadores da Segurança Pública. Entre os Cães de Caça, está o taciturno Shinya Kogami.
Todos no departamento portam uma arma especial, a Dominator, também chamada de os olhos da Sybill. A Dominator só dispara em direção ao alvo se sua paisagem mental estiver suja, isto é, se o indivíduo apresentar uma alta propensão ao crime, mesmo que motivado por um momento de stress isolado. Se os índices de stress do alvo estiveram normais, a arma trava automaticamente.
O antagonista, Makishima Shougo, no entanto, encontra uma maneira eficiente de burlar o sistema. E Kogami, cujo parceiro foi morto no passado por Makishima, vê na caçada ao sociopata, um conflito de ordem pessoal e persegue as pistas que o levarão ao derradeiro e fatal confronto com o vilão com quem tem uma história não resolvida.
Como toda narrativa sobre um sistema totalitário e absoluto, temos uma revelação sobre o que governa essa sociedade distópica que, embora não exatamente surpreenda, é bastante interessante. Psycho-Pass traz uma rica mitologia e personagens cativantes com backgrounds bem desenvolvidos, combinando elementos de Minority Report e Lupin III com ecos da obra de escritores consagrados da ficção científica, como George Orwell e William Gibson (que até ganham menções especiais em algumas ótimas linhas de diálogo).
Psycho-Pass trilhou um caminho diferente de seus pares. Nasceu anime para só posteriormente ganhar as páginas de um mangá. Produzido pelo aclamado estúdio de animação Production I.G, responsável por hits de diferentes gerações – como Ghost in the Shell , Shingeki no Kyojin e Patlabor – em 22 episódios, Psycho-Pass foi veiculado pela emissora japonesa Fuji TV a partir de outubro de 2012, ganhando uma segunda temporada exatamente dois anos depois, em outubro de 2014. Foi adaptado para o formato mangá no ano de sua estreia, em novembro, na revista mensal Jump Square, publicação voltada para o gênero shonen, cujo público alvo é constituído, em sua maioria, de jovens do sexo masculino.
Aparentemente procedural, os casos isolados a princípio se costuram à trama principal de maneira orgânica e inteligente conforme a narrativa avança. Carregada pela tensão psicológica, pela interação entre seus personagens (cujos relacionamentos vão sendo desenvolvidos naturalmente), pelos altos índices de violência gráfica (nunca gratuita, convém dizer), Psycho-Pass atinge um nível de maturidade e profundidade de fazer inveja para muitas séries sci-fi com essa vibe futurista. A criação de Katsuyuki Motohiro aborda temas contundentes e levanta questionamentos oportunos: em tese, uma sociedade perfeitamente ordenada é pintada na tela, mas cuja liberdade (em todos os sentidos) nos foi cerceada, tornando-se uma utopia que alguns até mesmo esqueceram o quão necessária é e a falta que ela faz. Não existe mais livre-arbítrio. Para completar, as falhas e brechas no sistema comprometem seu já superficial senso de justiça, punindo inocentes e fazendo com que verdadeiros criminosos consigam passar ilesos.
Não importa o contexto – se ficcional ou não – o poder e o governo são sempre irônicos.
A obra ganha pontos, inclusive, no desenvolvimento de um vilão magistral, cujo antagonismo é bem fundamentado, escapando com sabedoria da típica narrativa maniqueísta. Sua construção psicológica é soberba e repleta de nuances que fazem do personagem muito mais do que apenas um vilão. Obviamente suas cruéis decisões e seus atos atrozes despertam a ira dos personagens que lutam por justiça e dos espectadores que acompanham a aventura. Mas seu raciocínio prático e objetivo constantemente nos leva à reflexão.
Outro aspecto a se destacar é a representatividade feminina. A ideia de Motohiro, desde o início, era andar na contramão das tendências vigentes de seus contemporâneos, portanto, abolindo a figura da moe – uma gíria japonesa que se refere a personagens fofas – e investindo em uma protagonista que, embora aparentemente frágil, não é a típica donzela em apuros, histriônica e cheia de pudores da maioria dos títulos do gênero. Irrita esse estereótipo da menina doce e virginal, que fica ruborizada e praticamente surta diante de um homem sem camisa, por exemplo. Felizmente, Akane passa bem longe desse arquétipo. Akane jamais trai sua equipe ou seus princípios. De cara, pode até soar como uma Mary Sue, perfeita em todos os aspectos, mas apresenta uma grande evolução e amadurecimento em sua função como inspetora e também como ser humano, especialmente após uma tragédia de ordem pessoal. E é inteligente também. Sempre focada em não abandonar os protocolos da missão ou se render a impulsos desesperados.
Um grande anime e um grande mangá.
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Psycho-Pass”