[Cinema] Metropolis

É impressionante, mas, em 1927, Fritz Lang discutia temas pertinentes à nossa atual realidade e já inventara conceitos que seriam altamente utilizados e reciclados em obras de ficção-científica lançadas décadas depois. De fato, ainda conseguimos identificar ecos de seu cinema em produções atuais. E é por isso que Metropolis permanece uma obra vanguardista mesmo em 2022, quase um século após seu lançamento.

Cine Passeio – Foto: Daniel Castellano/SMCS

No sábado, 24 de setembro – meu aniversário! – esta obra seminal do Expressionismo Alemão foi exibida gratuitamente, em cópia restaurada, no charmoso subsolo do Cine Passeio. Irônico, pois o elemento nuclear do filme é a desigualdade social abismal, que segrega os trabalhadores que mantém Metropolis em pleno funcionamento, relegando-os ao subsolo, onde trabalham por dez horas diárias ininterruptas, em condições extremamente precárias e insalubres. Enquanto na superfície, vive a classe abastada, desfrutando dos avanços tecnológicos e de todos os luxos que a mão de obra escrava proporciona com seu árduo e desumano trabalho, diretamente do subterrâneo invisibilizado de Metropolis. Mas não se preocupem. O subsolo do Cine Passeio, como falei, é bem mais confortável e agradável do que aquele apresentado no filme de Friz Lang.

Situado em um futuro distópico – a trama do filme se passa em 2026, o que seria cem anos após sua produção -, o roteiro escrito por Thea von Harbou, apresenta uma sociedade regida por um sistema totalitário e com uma divisão hierárquica que escancara a disparidade social entre os moradores. O universo retratado na tela segrega Metropolis em duas castas bem distintas. Coube a Lang dar vida a este texto, partindo dos conceitos e estética do Expressionismo Alemão.

Para os não familiarizados com o movimento, o cinema expressionista tomou as telas na década de 1920, e defendia a tese de que o filme se transforma em arte na medida em que as imagens se afastam da realidade e do realismo. O movimento que, nas artes, se caracterizava pelo uso intenso de cores na representação de emoções, utilização de figuras abstratas e deformação dos objetos; no cinema, era definido pelo alto contraste, utilização de técnicas bem marcadas de luz e sombras, composição de ambientes sombrios, atuações exageradas baseadas na dramaticidade intensa do teatro e os excessos na maquiagem, de modo a ressaltar ainda mais as expressões faciais dos personagens. No conteúdo, as obras traziam uma imersão no íntimo e no isolamento do ser humano, valorizando a subjetividade. A natureza emocional conflituosa do indivíduo ganhava representação na tela por meio de uma estética soturna, que ficava no limite entre o sonho e o pesadelo, abusando de exageros interpretativos e cenográficos.

Metropolis trabalha com signos políticos e religiosos bem definidos e destacados, apoiando-se na força do simbolismo. Ao discutir o papel das lideranças,  coloca no centro da narrativa uma personagem, que não poderia ter outro nome que não Maria (Brigitte Helm), vista como uma santa que profetiza a chegada de um salvador, aliás, de um mediador entre os ricos industriais que governam a cidade e os operários que trabalham no subterrâneo, gerando energia por meio de máquinas pesadas. Ao descobrir a influência de Maria sobre seus funcionários, o dono da cidade, Joh Fredersen (Alfred Abel) ordena ao ressentido cientista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) que dê a aparência de Maria ao robô no qual ele está trabalhando, de modo que possa manipular o autômato a se erguer perante os trabalhadores, inserindo ideias distorcidas em suas cabeças, fazendo com que eles se revoltem uns contra os outros. No entanto, Freder (Gustav Fröhlich), o filho do governante de Metropolis, se apaixona por Maria e ao ir em busca da garota, se depara com realidade dos trabalhadores braçais que operam no subsolo.

Não à toa, Lang é considerado o precursor dos filmes de ficção científica, o inventor das distopias futuristas urbanas. Em 1927, antes da ascensão do nazismo, Metropolis discutia temas como a exploração de mão de obra escrava, luta de classes, autocracia e totalitarismo e ainda lançava alertas sobre os perigos do avanço e domínio da tecnologia e da religião sobre o homem.

Na figura de Maria, observamos como basta um estímulo para que cidadãos hedonistas, tão conduzidos pelos seus próprios desejos, se voltem uns contra os outros. E como é fácil incitar a violência lançando mão de palavras de ordem, do poder de persuasão e de argumentos que soem convincentes (ainda que não verídicos e passíveis de contradição) para que um levante se converta em uma tragédia e o que deveria ser revolução e simbolizar o grito de liberdade dos desfavorecidos, acabe por conduzi-los à autodestruição, planejada com frieza e calculismo por aqueles que governam.

Dentre outros elementos notáveis de Metropolis, estão a impressionante utilização de cenários em miniatura e a música, a cargo de Gottfried Huppertz, que confere celeridade e ritmo à trama, pontuando os momentos de tensão e leveza, sagrando-se como uma partitura catártica.

A obra também é cercada por curiosidades, algumas mais amenas do que outras. Thea, que assina o roteiro, possui uma biografia repleta de dualidades e controvérsias, se destacando na história como uma figura ambígua. Ela e Lang foram casados por algum tempo e se divorciaram em 1933, quando o nazismo instalou-se definitivamente na Alemanha, após  Adolf Hitler assumir o poder. Lang fora convidado por Hitler para ser o cineasta da propaganda nazista. Oferta que recusou. O realizador resolveu, portanto, deixar o país e Thea se aliou ao partido nazista, ocupando o cargo que fora oferecido ao seu ex-marido. Thea é vista, desde então, como uma simpatizante da ideologia de Hitler, mas também é apontada como alguém que se uniu ao inimigo para tentar proteger as pessoas por quem ela sentia afeto, como o próprio Lang. Mas esta é uma hipótese que jamais foi confirmada.

Há, no longa, uma cena faltante que é explicada por meio de letreiros. A justificativa quanto à sua ausência deve-se muito provavelmente ao fato de ter se perdido quando o filme chegou aos Estados Unidos e foi picotado para ser exibido nas salas de cinema do país. Algo típico dos nossos irmãos norte-americanos, sempre encurtando a duração dos longas para torná-los mais comerciais e atrativos ao público – um padrão de Hollywood.

De qualquer forma, com cena faltante ou não, esse clássico de 1927 deve ser visto, revisto e é um filme sobre o qual todos devemos nos debruçar de tempos em tempos, refletir sobre os conceitos apresentados e tentar encontrar nosso mediador. Ainda que não se trate de uma figura humana, mas de algo mais abstrato. Como é salientado diversas vezes durante o longa: “o mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração.”

Para os assinantes, o filme encontra disponível no catálogo do Telecine.

Andrizy Bento

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