[Eventos] Japanese Film Festival Online 2024 (JFF) – Parte 1

Promovido pelo Japan Foundation (única instituição japonesa dedicada à realização de programas abrangentes de intercâmbio cultural internacional em todo o mundo), o Japanese Film Festival (JFF) é um festival de filmes on-line cujo intuito é promover o cinema japonês. Em 2024, a Japan Foundation realizou a terceira edição do JFF, a maior de todos os tempos, com a exibição de 23 filmes, incluindo os 4 curtas-metragens da Competição de Filmes de Terror do Japão e duas séries completas de doramas. Desta vez, o evento acontece simultaneamente em 27 países e as produções que compõem o line-up foram transmitidas de forma gratuita, com legendas em 16 idiomas diferentes, por meio do site do festival. Os filmes não estão mais em exibição, mas ainda é possível conferir os dois doramas que fazem parte da programação, Downtown Rocket e RIKUOH, ambos com 10 episódios. Clique para conferir.

Eu gostaria de ter visto mais filmes. Mas, com a agenda apertada e tendo de escolher minhas lutas e fazer uma criteriosa seleção, dos 23, consegui assistir 8 longas e trago, aqui, a minha singela opinião sobre eles em um post dividido em duas partes:

MY BROKEN MARIKO

É em um restaurante, durante uma refeição casual que Tomoyo Shiino (Mei Nagano) descobre, por meio de um noticiário na TV, que sua melhor amiga morreu após cair de um prédio. Tomada pela descrença, Shiino tenta entrar em contato com Mariko (Nao) pelo celular. Finalmente, após aceitar que sua amiga não vai lhe responder, ela decide ir até seu apartamento onde não encontra nada, pois seus pertences já foram retirados do local. Shiino e Mariko eram amigas desde a infância. A última, vítima de constantes abusos físicos por parte do próprio pai, cresceu repleta de cicatrizes da violência sofrida dentro de casa e do abandono da mãe que, enciumada, partiu após acusar Mariko de seduzir seu pai, imputando à garota a culpa por ter sido violentada pelo genitor. Em seus relacionamentos, Mariko viu se repetir o ciclo de violência. A única constante em sua vida, era a amizade com Shiino que sempre estava disposta a acolhê-la a cada nova agressão e término de relacionamento abusivo.

Embora traumatizada, Mariko permanecia doce, passiva e até anestesiada. Como se acreditasse merecer toda a dor que sofria. Da época da infância, Shiino guarda as cartas que a amiga lhe enviava. Durante a adolescência, ambas combinavam de morar juntas e viajar. Na vida adulta, permaneciam em constante contato, trocando mensagens pelo celular. Repassando cenas de sua amizade com Mariko, procurando reconstituir toda a sua história com a amiga mentalmente, Shiino decide que cabe a ela dar a Mariko uma despedida digna e, em uma atitude impulsiva e desesperada, vai até à casa do pai da melhor amiga para roubar as cinzas de Mariko a fim de jogá-las no mar. Shiino tira férias do emprego sem consultar o patrão explorador e insensível e parte de ônibus em uma jornada repleta de perrengues a fim de honrar a memória da amiga.

Apesar de um enredo interessante, a abordagem fica aquém daquilo que promete, apresentando vários entrechos espalhafatosos, passagens afetadas e circunstanciais demais, com algumas conveniências de roteiro que forçam a barra e jogam para o alto toda a sutileza proposta de início. De positivo, temos uma direção de fotografia que, embora seja bem discreta, é funcional e eficiente, investindo em uma câmera mais estática, apostando em planos fechados e planos detalhe que tornam o este road movie um retrato intimista e sensível de um dos vínculos afetivos mais fortes que existem: a amizade verdadeira que é muito rara de se encontrar.

Adaptação de um premiado e popular mangá de mesmo nome, My Broken Mariko, de Yuki Tanada, é um tanto bobo em diversos momentos, pesa a mão, erra na tônica, apresenta uma forte indecisão quanto ao gênero que pretende seguir (dramático demais pra ser comédia, cômico demais para ser drama, e desbalanceado demais pra ser tragicomédia), mas tem alguns trunfos que o tornam digno de ser visto, inclusive o final que é bastante simbólico e acertado.

WEDDING HIGH

Em um país tão apegado a tradições como o Japão, é óbvio que o casamento é supervalorizado. Até os anos 1980, os casamentos arranjados (chamados Omiai) eram bastante comuns por lá. Com o declínio da prática (que ainda ocorre, mas com menor frequência), houve também uma queda de matrimônios e, consequentemente, de natalidade, já que o povo japonês apresenta certa dificuldade em se relacionar. O que acabou por causar um problema previdenciário no país, tornando o Japão o país com a maior taxa de pessoas idosas no mundo. Apesar das fortes diferenças culturais, ainda assim, existe algo comum à nossa sociedade ocidental quando se trata de matrimônios, e este diz respeito aos papéis de gênero. No longa de Akiko Ohko, temos uma noiva sonhadora e um noivo indiferente quanto a uma recepção de casamento. No momento em que a história do par começa a ser contada, já temos o típico mocinho que estava feliz curtindo a solteirice até encontrar sua, para todos os efeitos, alma gêmea. E uma mocinha que havia acabado de terminar um namoro com um colega de faculdade e estava triste e cabisbaixa até encontrar o amor de sua vida. Isto é, o homem que se basta e acidentalmente se apaixona e a mulher que tem sua vida centrada no relacionamento amoroso. Ela, empolgada e atenta aos mínimos detalhes da cerimônia de casamento. Ele, mais desinteressado no ritual e altamente preocupado com os custos da festa. Típico.

Mas o filme em si vai muito além de uma típica comédia romântica sobre casamento. Abordando todo o stress do planejamento e execução de uma recepção matrimonial, Wedding High é um ensemble film, no melhor estilo Robert Altman, que partindo de uma edição rápida e esperta, conta a história de diferentes personagens que participam, cada um com uma função, na cerimônia de casamento. Os mais diversos convidados veem nesse acontecimento que celebra o enlace de um casal, sua chance de brilhar individualmente. Assim, os tradicionais vídeos de casamento, discursos e brindes dão a chance de um produtor de TV frustrado mostrar todos os seus dotes como cineasta, e os chefes da noiva e do noivo (este último, especialmente, por ter caído em desgraça após um adultério) transformarem o púlpito em um palco para shows de stand up comedy. Com o tempo da recepção estourado, a cerimonialista que também ganha protagonismo na trama, faz um malabarismo notável para seguir toda a programação sem precisar cortar nada. Apelando para uma improvisada regra de três minutos, ela convence os responsáveis pelo entretenimento a fazerem seus números ao mesmo tempo a fim de otimizar a última hora que resta do período de aluguel do espaço. Em uma sincronia surpreendente, uma apresentação de taiko, um show de mágica e uma performance de dança ocorrem simultaneamente e de maneira bem-sucedida. Ou quase isso. Outras histórias contadas são de dois ilustres penetras que movimentam o enredo: o ex-namorado da noiva, determinado a interromper a cerimônia a fim de ganhar a garota de volta; e um ladrão que se faz passar por alguém da staff para executar um plano de roubo.

Toda a cerimônia é um tour de force capitaneado pela cerimonialista que abre e fecha o enredo. Seus minutos finais apresentam uma quebra de expectativa que tornam o longa ainda mais interessante. O casamento pode significar a realização na vida de muitas mulheres. Mas a carreira profissional também. E com lucros e louros, por vezes, mais efetivos e concretos. Wedding High é uma comédia leve, divertida e inofensiva sobre os desafios e as delícias proporcionadas por uma cerimônia de casamento.

I AM WHAT I AM

Falando em Omiai, este longa de Tamada Shinya, acompanha Kasumi Sobata (Toko Miura), uma jovem adulta formada em música, que não sente atração romântica e nem sexual por ninguém. E costuma expressar isso verbalmente. Kasumi é muito bem resolvida com esse aspecto de sua vida, confortável sendo solteira e curtindo programas solitários, porém, procurando cultivar amizades verdadeiras. Sua angústia está no fato de que a sociedade parece não aceitá-la e as cobranças para que ela saia com algum homem, se case e forme uma família, vêm de todos os lados, especialmente de sua mãe que tenta, inclusive, arranjar pretendentes para a filha, não se conformando com o fato de Kasumi já estar com 30 anos e seguir sem se “arranjar” com ninguém.

As pessoas à sua volta não entendem e nem se esforçam para entender a desimportância do amor romântico e do casamento na vida de Kasumi. Em uma das primeiras cenas do filme, Kasumi está em uma espécie de double date em uma lanchonete com uma colega do trabalho e dois homens. Apesar de uma certa apatia inicial, quando os homens presentes à mesa puxam assunto com Kasumi e ela começa a falar sobre Tom Cruise em Guerra dos Mundos, se mostra empolgada, para só então se dar conta de que nenhum dos dois está interessado em seus interesses. Um deles sai para fumar com sua amiga e o outro não quer saber de seu parecer sobre o filme de Steven Spielberg. Quer apenas convidá-la para sair.

“Homens são ensinados a amar seus hobbies, seus interesses e seus objetivos acima de tudo. Mulheres são ensinadas a amar os homens”. Desde que li isso em comentários de uma página que fala sobre a desigualdade entre os gêneros no instagram, fiquei reflexiva a respeito. É óbvio que eu já havia notado como somos socializados de maneiras diferentes, homens e mulheres. Mas ver essa frase expressa de maneira tão sucinta, objetiva, certeira e inequívoca foi quase como ter um novo insight sobre o desequilíbrio dos papéis de gênero na sociedade.

I Am What I Am se passa no Japão, um país culturalmente machista. Mas, especialmente após o crescimento de uma onda de conservadorismo e uma tendência ascendente de tradwifes nas mídias sociais, eu não duvido que muitas espectadoras brasileiras venham a se identificar e incorrer nos mesmos questionamentos que tomam de assalto a protagonista do longa. Afinal, como citado anteriormente, ela não tem nenhum problema em ser o que é; o que a frustra são os julgamentos e as cobranças em torno de si. Uma das passagens que melhor ilustram isso na produção é a subversão que ela e a amiga fazem do conto de fadas Cinderela, em que tudo que a protagonista almeja é exatamente o que todas as outras garotas do reino desejam: ser escolhida pelo príncipe encantado, ainda que diferentemente das demais, ela tenha uma origem humilde. A Cinderela que despreza o romance e o casamento, escrita por Kazumi em parceria com sua amiga, é a epítome da própria história da protagonista, não bem aceita por figuras de autoridade políticas em uma simples apresentação para crianças na escola. A diversidade é rejeitada em ordem de se manter o status quo e semear na cabeça dos pequenos, desde cedo, que o único caminho correto e aceitável a se seguir é a velha cartilha do matrimônio e da família.

Kazumi, no entanto, não é desprovida de emoções e sentimentos. Ela valoriza seus afetos, as amizades sinceras, que são vínculos por vezes subestimados e preteridos diante do amor romântico que é central na vida de grande parte das mulheres. Mãe, avó, irmã, amigas de Kasumi, estão sempre falando de homens. E ela quer falar de outras coisas, possui outros interesses.

Em uma das cenas mais bem fotografadas de I Am What I Am, a protagonista toca pela última vez seu violoncelo, pois consegue se expressar melhor por meio de uma canção do que com palavras, preferindo utilizar o instrumento que sempre foi sua paixão desde a infância do que fazer um discurso no casamento de sua amiga, como esta havia originalmente lhe pedido. Uma sequência tão singela quanto sublime.

Outro ponto interessante do longa é o filme favorito de Kasumi. Em um determinado momento, ela revela que gosta de Guerra dos Mundos porque, ao invés de o personagem de Tom Cruise estar correndo em direção a algo, neste ele está apenas fugindo desesperadamente. E Kasumi se identifica com isso, pois ela está fugindo desesperadamente dos padrões sociais, do comportamento esperado, da normatividade. E, permite, assim que muita gente se identifique com ela. Não só outros personagens dessa narrativa, como quem a assiste. Kasumi pode gostar e não ver tristeza em ser sozinha e em estar solteira. Mas isso não significa que ela está sozinha no mundo.

KIBA: THE FANGS OF FICTION

Após a morte do CEO de uma influente editora, as especulações começam para ver quem será o nome a assumir o comando. A esposa e o filho do CEO são preteridos em favor do diretor Tomatsu, veterano em vendas, conhecido pelo pouco ortodoxo apelido de Motor Tanque. Tem início uma série de mudanças e reestruturação nesse império editorial, diante da crise do mercado literário e da queda na comercialização de revistas, bem como uma guerra interna entre editores, que conspiram uns contra os outros em ordem de sobreviverem em uma indústria cada vez mais ameaçada pela internet.

A editora Kunpu produz publicações focadas em literatura, arte e cultura, que costumam serializar ficções e mangás de grandes autores. Porém, a mídia física vem perdendo constante espaço para o audiovisual e a internet. O carro-chefe da editora, a Edições Kunpu, passa a ser trimestral, o que gera a primeira grande polêmica relacionada ao grupo. Nesse cenário, surge o visionário Hayami Teruya, editor-chefe de uma das revistas da empresa. Hayami ilustra perfeitamente o lema “onde os outros enxergam obstáculos, ele vê oportunidades”, e propõe ideias ousadas em uma revista de tiragem e vendagem menor da editora, a Trinity, que tem visto seus números despencarem a cada nova edição. Ele traz para seu lado a editora Takano Megumi, transferida das Edições Kumpu após comentários que desagradam um dos escritores mais importantes da publicação durante o lançamento de sua mais recente obra, e proferidos bem diante de sua chefe que não hesita em mudá-la de divisão dentro da editora. A jovem possui um faro e um espírito desbravador que Hayami não consegue ignorar. Juntos, fazem da outrora fracassada Trinity um êxito de vendas, ao apostarem em talentos antigos, novos, romancistas estreantes, autores descartados pela Edições Kunpu e figuras populares e influencers que despontam como colaboradores da publicação.

Mais do que o resultado final, o processo em si é valorizado, mostrando a importância de cada etapa da produção. O que é, inclusive, ilustrado por uma analogia óbvia, mas eficiente a respeito da produção de vinho durante uma cena de jantar. Mergulhando nos bastidores do mercado editorial japonês, este filme de 2021, dirigido por Daihachi Yoshida, retrata um jogo de interesses e manipulação que envolve a imprensa, o mercado literário, publicitário e de vendas. Kiba reflete – sem nostalgia, contudo – acerca da sobrevida das livrarias físicas, que vêm definhando e agonizando, engolidas pela gigante Amazon. Fala da competitividade no mundo editorial e a depravação da arte, quanto esta precisa se relacionar com negociações que fogem à moral e à ética, em ordem de subsistir em um mundo cada vez mais dominado por conteúdos rasos, fúteis e superficiais acessados facilmente pela tela de um smartphone.

O filme se prolonga um pouco em seu epílogo, mas tem um roteiro engenhoso e timing cômico e dramático acertados. Ótimo trabalho de Yo Oizumi na pele de Hayami Teruya que faz bom uso de informações pessoais e tece uma rede de intrigas para estar sempre um passo a frente de seus rivais, além de esbanjar charme, carisma e presença de cena. Mayu Matsuoka, que interpreta Takano Megumi, é outro destaque. Convincente em um papel que trafega com naturalidade pelas facetas de garota sensível e curiosa e mulher obstinada e destemida. Não à toa, é considerada uma das melhores atrizes jovens do Japão, tendo inclusive faturado o prêmio de cinema da Academia Japonesa de Melhor Atriz Principal justamente por esta produção.

Continua…

Andrizy Bento

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