[Streaming] Perfil de uma Mulher

Drama japonês dirigido por Koji Fukada (vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, com Harmonium) retrata de modo sutil a obsessão e a vingança, partindo de uma premissa intimista.

Na trama, Ichiko (Mariko Tsutsui), uma doce cuidadora de idosos prestes a se casar com um médico, tem sua vida e identidade transformadas após o sobrinho, Tatsuo (Ren Sudo) cometer um crime. O garoto sequestra Saki (Miyu Ogawa), uma das netas da idosa que a tia cuida, após conhecê-la em um café. Ichiko está disposta a revelar tudo para a mãe da garota sequestrada, mas a irmã de Saki, Motoko (Mikako Ichikawa) a convence a guardar segredo, alegando temer que a mãe dispense Ichiko de sua função. No entanto, conforme a narrativa avança, fica visível que o sentimento que Motoko nutre por Ichiko vai além de amizade ou cumplicidade. Enciumada com o casamento da cuidadora de sua avó, Motoko passa a revelar à imprensa o grau de parentesco de Ichiko com o sequestrador de sua irmã, além de uma história sobre a infância de Tatsuo que a cuidadora lhe confidenciou.

A vida regrada e tranquila de Ichiko sai dos eixos a partir de então. A exposição na mídia a leva a perder seu emprego, sua privacidade e à dissolução de seu noivado. Ichiko vai se isolando socialmente e tentando reconstruir sua jornada com o objetivo único de se vingar de quem levou seu mundo regrado e rotineiro à ruína. A narrativa não linear intercala os dois períodos na vida da personagem principal, alternando entre a época em que Ichiko ainda é cuidadora e após sua demissão e exposição. A performance assombrosa da protagonista, transitando da doce enfermeira para a mulher arruinada em busca de vingança, é o que mais impressiona no longa.

Através de uma lente intimista, o cineasta registra as ambiguidades do comportamento humano, o egoísmo, o espírito revanchista, a desfaçatez e a culpa sem jamais despir seus personagens da humanidade intrínseca a eles. Mesmo praticando atos insidiosos, não sentimos repugnância por nenhum deles, pois todos passam longe da estirpe de justiceiros anti-heróis que retornam em busca de revanche e que tanto nos acostumamos a ver em filmes hollywoodianos; mantendo suas condições frágeis e vulneráveis, suas ambiguidades, cometendo erros e sendo soterrados pela responsabilidade de seus atos baixos e mesquinhos.

Carregando na tensão psicológica, Perfil de Uma Mulher  é um suspense construído de pormenores, acentuado por planos reveladores, cortes abruptos e por uma perspicaz edição de som e montagem. Na rabeira do crime cometido, está uma mulher afetada pelo sequestro no qual não teve nenhuma participação, mas que acaba sendo uma das mais afetadas pela história, devido pura e simplesmente ao laço sanguíneo com o autor do rapto e à misoginia da sociedade japonesa.

A alma do filme, portanto, está na personagem central e na atuação irrepreensível de Mariko, que vai revelando gradativamente as camadas do tipo que representa conforme o espectador vai compreendendo e descobrindo mais sobre cada uma das duas linhas temporais que compõem o longa-metragem.

Há duas cenas que ilustram um perfeito contraponto na história de Ichiko antes e depois do incidente. Antes de sofrer a reviravolta, vemos o reflexo da protagonista no espelho retrovisor, quando ela ainda tem a falsa sensação de que possui controle da sua vida, mas está sendo guiada até seu destino por terceiros. Ao final do filme, ela surge novamente no espelho retrovisor, porém, guiando o veículo, ainda que sem rumo e sem controle aparente de sua vida. Ichiko segue incerta de seu caminho, no entanto, está no comando agora. E cabe somente a ela dar um novo sentido à sua vida após uma vingança infundada. Finalmente, ela consegue seguir em frente.

Perfil de Uma Mulher mostra o quão nocivo e destrutivo é o machismo estrutural e como a obsessão e vingança não nos levam a lugar nenhum, pelo contrário, nos mantém estagnados no mesmo lugar, sem conseguir avançar, ainda mais quando se tornam o objetivo principal de nossas vãs existências. Ao desfecho da trama, os personagens aprendem com a insignificância de seus atos que os guiaram a uma jornada de infelicidade e, seguem, em absoluto silêncio, lidando com suas culpas de maneira íntima e velada, em busca de reparações em suas vidas.

A produção de 2019 encontra-se disponível no MUBI.

Andrizy Bento

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