[Cinema] Tár

“A Alma seleciona sua própria sociedade, mas lembrem-se: o lado ruim da seleção é que fecham se as válvulas do interesse.”

Ultimamente, muito se discute sobre separar o artista da obra, especialmente na atual era do cancelamento. Porém, poucas discussões tiveram tanta profundidade quanto Tár que encontra na atuação irrepreensível de Cate Blanchett – na pele de uma apaixonada por sua arte, mas de conduta moral questionável – a representação perfeita de um debate tão delicado.

O longa de Todd Field, em cartaz desde janeiro aqui no Brasil, traz Blanchett em mais uma performance elogiada, desta vez vivendo Lydia Tár, a nova maestrina regente da Filarmônica de Berlim.

Como uma apaixonada pelos elementos que definem a estética em uma obra cinematográfica, tais como figurino, cenografia e tudo o que compõe a arte da mise-en-scène, me vi imediatamente atraída pelo visual do filme. A fotografia obscura garante uma aura sombria, mas a direção de arte torna a atmosfera charmosa.  Todavia, acima da beleza plástica, o visual é um dos elementos que movem a personagem na narrativa. A interação da protagonista com os ambientes pelos quais a história perpassa é vital para o sucesso artístico do filme. É interessante perceber as sutis diferenças em sua personalidade nos diferentes espaços que ela frequenta.

Em seu apartamento, ela se porta como uma artista inspirada e gênia solitária. No palco, fica evidente o quão territorialista e possessiva ela é quando se trata de seu púlpito e sua partitura, com sua obsessão inegável pela perfeição, pelo primor, pela elegância e por ser o centro das atenções. Aspectos que, de certo modo, contrastam com sua conduta em um ambiente mais familiar, isto é, a casa que divide com sua esposa e filha (embora nem pareça realmente morar lá). Ela sempre chega apagando as luzes, como se um ambiente iluminado revelasse lados seus que ela não quer que a família perceba; um lugar em que ela não faz questão de holofotes, diferentemente de quando veste sua armadura de musicista. Ali temos um raro acesso a um lado mais humano da personagem, mas ainda assim frio, pouco sensível, como se ela não desse abertura e não tivesse intimidade suficiente com sua família.

Suas conexões pessoais são complexas, à beira de serem classificadas como desastrosas. Além de não se abrir suficientemente com a esposa e parecer quase inacessível até mesmo para sua filha, Lydia tem uma assistente que faz todas as suas vontades à espera de uma recompensa. Ela é acostumada a manipular as pessoas ao redor e ter absoluto controle sobre todos, sempre se portando como uma bitch insensível muito acima de qualquer mero mortal, relevante demais para se relacionar com quem não é capaz de atingir sua grandiosidade e colocando o lado profissional a frente do pessoal em qualquer situação. Mas, sim! É inegavelmente talentosa.

O turning point em sua jornada de autoritarismo, requinte e rigor estético, é a notícia do suicídio de uma ex-colaboradora. Pela primeira vez, ao refletir sobre o poder do qual desfruta em sua área de atuação e a capacidade de, até mesmo, arruinar reputações, Lydia parece experimentar a sensação de culpa, embora não consiga processá-la de fato. Seu senso de auto importância e grandeza começa a vacilar. Ao mesmo tempo, surgem acusações de sua conduta abusiva e, aos poucos, acompanhamos o declínio da maestrina. A perda de sua reputação, de suas conexões, de sua família e até mesmo de sua arte. Sua vida adquire uma estrutura labiríntica da qual ela não faz a menor ideia de como sair.

Discutindo as relações abusivas de poder no trabalho, a partir da metáfora da hierarquia na orquestra e da obsessão pelo controle e refinamento estético, Tár é um impressionante retrato da cultura do cancelamento, traçado na tela com fino sarcasmo.

Pela oitava vez indicada ao Oscar (e já tendo sido premiada duas vezes, uma como atriz coadjuvante por O Aviador em 2005 e outra como melhor atriz por Blue Jasmine em 2014), Cate Blanchett desponta como uma das favoritas ao prêmio de atriz principal em 2023, ao lado de Michelle Yeoh (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo). Merecidamente.

★★★★★

Andrizy Bento

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