Ainda me lembro de ler, ouvir e assistir às primeiras notícias sobre o incêndio na Boate Kiss que vitimou 242 jovens e deixou mais de 630 feridos, alguns com sequelas gravíssimas. Uma das lembranças cristalinas como água daqueles dias é um comentário que ouvi de uma pessoa muito próxima: “se essas crianças estivessem em uma igreja, isso não teria acontecido”. Ignorando completamente o fato de que, em janeiro de 2009, o teto da igreja Renascer, na Zona Sul de São Paulo, desabou durante um culto, deixando 8 mortos e 96 feridos. Pior: ignorando a dor dos pais das vítimas. Ignorando que esses jovens tinham todo um futuro pela frente que não chegaram a viver, pois tiveram suas vidas interrompidas, aliás, ceifadas cedo demais. Ignorando os verdadeiros responsáveis que tiveram, sim, uma conduta criminosa, considerando que o lugar estava completamente irregular.
O incêndio teve início devido a um artefato pirotécnico barato utilizado durante o show da banda que se apresentava por lá naquela noite. O sinalizador que soltava faíscas atingiu a espuma instalada no teto. Inadequada, desnecessária e ineficaz para isolamento acústico, altamente inflamável e sem tratamento antichamas. A consequência dessa irresponsabilidade é que a fumaça tóxica se alastrou rapidamente. O extintor de incêndio não funcionou (havia um número insuficiente de extintores que, além disso, estavam fora do prazo de validade). Não havia saídas de emergência. O local atuava fora da capacidade de público (muito acima da capacidade máxima permitida). Não haviam sinais luminosos indicando as saídas. Os dutos de ar eram ineficientes e estavam parcialmente obstruídos, restringido a saída da fumaça para ambiente externo. O segurança barrou a saída do público por, pelo menos, dois minutos após a catástrofe começar. O estabelecimento funcionava sem alvará, encontrando-se em processo de renovação.
Resultado: caos formado, jovens se empurrando, desmaiando devido à fumaça, esmagando e pisoteando uns aos outros no desespero para encontrar a saída. Por conta da iluminação inadequada, muitos se dirigiram ao banheiro, achando que se encaminhavam para a saída, não resistindo aos gases tóxicos inalados, resultando em uma pilha de corpos naquele local específico. Vários outros sofreram queimaduras extensas. Os que conseguiram deixar a boate, se deparavam com um cenário de guerra na calçada, com pessoas estateladas no chão, inconscientes, com dificuldades para respirar, alguns recebendo massagem cardíaca de amigos, bombeiros contando com a ajuda de sobreviventes para ajudar no salvamento – visto que dispunham de uma equipe pequena de profissionais. Em meio a tudo isso, uma sinfonia tétrica de celulares que tocavam incessantemente e anunciavam na tela inúmeras chamadas perdidas de mães, pais, irmãos, tios, avós…
Segundo relatos de médicos e paramédicos, alguns dos que conseguiram escapar, chegavam vivos aos hospitais, mas faleciam nas UTIs e mesmo minutos após darem entrada nas unidades de saúde. A causa: envenenamento pela fumaça química liberada no incêndio.
O incêndio criminoso foi causado por incompetência e omissão. A responsabilidade e culpa pesam sobre diversos ombros: músicos, proprietário e sócio da casa noturna, autoridades fiscalizadoras, poder público. Mas não sobre os ombros dos jovens que saíram de casa, naquela noite, com o intuito de se divertir. Uma das garotas, inclusive, saiu unicamente para comemorar seu aniversário de 22 anos. Por isso que comentários como o transcrito acima são, no mínimo, revoltantes.
Revoltante é, também, ouvir a voz do segurança no primeiro episódio da série baseada no trágico evento que ocorreu no estabelecimento noturno localizado em Santa Maria (RS). O caos se instala após a fumaça se espalhar muito rapidamente. Em meio ao pandemônio e corpos pisoteados dentro da boate, pessoas tendo a pele atingida pelo fogo, gritos, dor, desespero, ouvimos um funcionário da Kiss gritar: “sem comanda ninguém sai”.
Mais revoltante ainda é saber que os pais das vítimas que só queriam justiça pelos filhos, foram processados por figurões do Ministério Público que deveriam fazer valer os direitos destes pais e não se levantarem contra eles. Tudo para acobertar a conduta incompetente e irresponsável de agentes fiscalizadores e autoridades administrativas de Santa Maria. “Incompetência não é crime” – é dito lá pelas tantas na série – mas é um convite, a portas escancaradas, para que tragédias dessa magnitude aconteçam. Ora, como não classificar como crime, então?
Os acusados pelo incêndio foram o proprietário e o sócio da casa noturna, o vocalista e o assistente da banda que se apresentava naquela noite. Mas outras pessoas precisavam ser punidas, dentre bombeiros, funcionários da Prefeitura, o próprio Prefeito de Santa Maria à época do caso e membros do MP. Ao todo, 28 pessoas foram indiciadas pela tragédia na boate Kiss, sendo que o MP denunciou quatro réus por homicídio simples com dolo eventual, quando se assume o risco de matar. Dez anos após o evento, considerado o terceiro maior desastre em casas noturnas do mundo, os responsáveis seguem em liberdade, aguardando novo julgamento.
Revoltantes são, também, os entraves burocráticos que tornam a execução da justiça de nosso país tão morosa.
Para que fatos como esse não sejam esquecidos em um país tão acostumado à memória curta (ou seria memória seletiva?) e, mais importante, que não sejam repetidos, é necessário que, por mais doloroso que seja, esses fatos sejam constantemente revisitados. A série Todo Dia a Mesma Noite se propõe a narrar o evento, bem como seus desdobramentos. Disponibilizada pela Netflix para mais de 180 países, é a oportunidade perfeita para que todos que desconhecem o caso, tenham acesso aos bastidores e se revoltem junto com os pais das vítimas. É imprescindível que você sinta essa revolta.
Nesse ponto, a produção é eficiente. Mas há outros méritos que merecem ser citados, como a estrutura narrativa, que define um escopo para cada episódio. Assim, o primeiro é centrado no fato propriamente dito, narrando os antecedentes, pincelando a vida de algumas das vítimas e depois dramatizado todo o caos que tomou a boate. Aqui vale destacar que a sensação de claustrofobia e o desespero das vítimas são bem traduzidos para o audiovisual, no entanto, a fotografia é falha, não explorando as dimensões do local e causando uma confusão no espectador que não consegue assimilar totalmente a desorientação dos presentes na casa noturna, pois não tem acesso visual suficiente à geografia do local.
O segundo episódio, mais emocional, é centrado no luto das famílias e traz algumas das cenas mais sensíveis e dolorosas. O terceiro, A Culpa, mostra os pais se reerguendo e se organizando em busca de justiça para seus filhos. O quarto, O Processo, retrata a briga judicial entre os pais das vítimas e o poder público. O último, Sem Fim, traz um desfecho – como o próprio título enfatiza – aberto, composto de pequenas vitórias e algumas derrotas, oriundas de nossa falha Justiça e destaca a passagem do tempo, a angústia das famílias e justifica o nome da série: Todo Dia a Mesma Noite. Tendo suas vidas completamente modificadas pela perda trágica dos filhos, esses pais apresentam sinais de exaustão, mas perdura a vontade de continuar lutando com as últimas forças que lhes restam.
Há algumas boas atuações e momentos que levam à comoção genuína. Há também diálogos forçados que parecem extraídos de telenovelas e um sotaque equivocado que deixa qualquer um, sulista ou não, desconfortável. Erro egresso de nossa teledramaturgia e que não dá indícios de reparação em um futuro próximo.
É imperativo dizer que a série, embora baseada em fatos, é uma ficção adaptada do livro de mesmo nome da jornalista Daniela Arbex. Os nomes foram alterados, mas os personagens são todos inspirados em histórias reais relacionadas ao caso. Houve críticas negativas por parte de muita gente que achou ofensivo dramatizar a tragédia. O que vem sendo uma constante no Brasil é se deparar com comentários de pessoas que acham desnecessário ou cruel séries e filmes baseados em tragédias e crimes reais, como é o caso de A Menina Que Matou os Pais, ou documentários como Pacto Brutal: O Assassinato de Daniela Perez, nem se atentando para o fato de que o Brasil embarcou na tendência do True Crime com um atraso considerável de algumas décadas. O mesmo público que reclama dessas produções nacionais, assiste, há anos, às produções hollywoodianas baseadas em crimes reais ocorridos nos Estados Unidos e come pipoca vendo séries como CSI. Vai entender…
Conforme mencionado alguns parágrafos atrás, a produção está disponível na Netflix para mais de 180 países. Sempre que emergem vozes clamando por reparação e justiça, é necessário que se lance mão de todos os mecanismos possíveis para que essas vozes sejam amplificadas, a mensagem ultrapasse barreiras e limites e crimes como esses jamais tornem a se repetir.
Por memória, por justiça, e para que não se repita.
A produção encontra-se disponível na Netflix.
Andrizy Bento