Boa parte dos créditos só surgem na tela por volta dos 40 minutos de filme. O que veio antes, foi apenas um longo prólogo cujo propósito é desenvolver o relacionamento entre um casal. A ruptura na vida do protagonista, o ator e diretor Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), se dá ao testemunhar uma cena de infidelidade. Por fim, a introdução é finalizada com uma tragédia.
Composto de belos quadros, com uma atmosfera bem urbana, e uma câmera na maior parte do tempo estática – que capta a beleza estonteante das paisagens ao redor, bem como a expressividade de seu poderoso elenco – o longa japonês Drive My Car, baseado em conto homônimo de Haruki Murakami, publicado em 2014, acompanha um dramaturgo tentando preencher lacunas de sua vida e em busca de um encerramento após dilacerantes perdas.
Convidado a encenar O Tio Vânia de Anton Tchekhov em um festival de teatro em Hiroshima, Yusuke atende – ainda que notoriamente contrariado – a uma das principais exigências da companhia de teatro que o contratou: permitir que a jovem motorista, Misaki Watari (Tôko Miura) o conduza do hotel em que está hospedado para os ensaios e vice-versa. Ele mostra um apego desmedido ao seu carro Saab vermelho – um modelo antigo, conservado e sofisticado – e reluta em deixar outra pessoa guiá-lo.
Apesar de uma hostilidade e desconfiança inicial com relação à motorista que a companhia de teatro designa para o ofício, aos poucos, ele cria uma conexão inesperada com ela, quase silenciosa, estabelecida por palavras necessárias e nunca por conversas triviais. Ela possui a mesma idade que a falecida filha de Yusuke teria se não houvesse morrido precocemente. Em comum, eles carregam segredos do passado e cicatrizes que ambos teimam em manter, visíveis ou não. Conforme a narrativa avança, essa relação entre eles torna possível o confronto com suas dolorosas memórias e faz com que se sintam mais confortáveis em se abrir diante do outro a respeito das marcas remanescentes de seus profundos traumas.
O roteiro da peça teatral O Tio Vânia, encenada por Yusuke (em uma versão audaciosa, composta de atores que falam diferentes idiomas e cuja tela instalada no palco traz os diálogos legendados para a plateia) norteia todo o enredo, costurando arcos. Mas o roteiro inacabado para o qual sua esposa, Oto (Reika Kirishima), tinha inspiração após relações íntimas com o marido, permeia sutilmente o drama, dando respostas a questões-chaves que martelam na cabeça do protagonista Yusuke.
Drive My Car é repleto de metáforas sobre o luto. Bastante intimista, apostando em uma estrutura linear e abrindo mão da verborragia em ordem de destacar as pausas e os silêncios tão significativos e valiosos à trama, o longa dirigido por Ryusuke Hamaguchi é uma obra singular, reflexiva, que incomoda e conforta na mesma medida, trazendo uma estranha sensação de inquietude e alívio ao espectador que se aventura a acompanhar a dor de Yusuke e de sua improvável sidekick, Misaki, ao longo de três horas de sessão.
O filme se encontra em cartaz nos cinemas em algumas praças brasileiras e concorre ao Oscar 2022 nas seguintes categorias: Melhor Direção, Melhor Filme Internacional, Melhor Roteiro Adaptado, além da principal, de Melhor Filme.
Andrizy Bento