Eternos

Há anos eu venho batendo na mesma tecla: de que os filmes da Marvel precisam fugir da zona de conforto. Por mais bem-sucedida que seja a fórmula adotada pelo MCU – filmes divertidos, coloridos e dinâmicos para toda a família e adotando, como em sua mídia de origem, o conceito de tie-in (histórias avulsas que se conectam à grande trama principal por meio de algum elemento da narrativa) – ela corria o risco do desgaste devido à intensa e frequente repetição. Por mais que me venha à cabeça o chavão “em time que está ganhando, não se mexe”, ele funciona enquanto dura a partida e, talvez, até mesmo o campeonato. Mas, recorrendo sempre aos mesmos passes, truques e táticas, o rival fica mais atento à forma como o outro time trabalha e, porquanto, o estilo de jogo se torna bastante previsível, fica fácil buscar meios de contornar, ludibriar e, por fim, vencer o tal time que está ganhando. O chavão é seguro, mas como tudo nessa vida, não pode ser utilizado em excesso.

Desde antes do filme-evento Vingadores: Ultimato, os espectadores já vinham apontando para a repetição da fórmula nos filmes solo dos heróis, como foi o caso com Homem-Formiga e a Vespa e Capitã Marvel. Uma pena que, quando finalmente, um título cinematográfico da Marvel foge do padrão estabelecido e ousa se arriscar, as críticas sejam tão severas a ponto de figurar como o longa do MCU com a menor porcentagem no Rotten Tomatoes (site que agrega reviews dos mais “conceituados” portais de cinema e entretenimento ao redor do mundo). Isso é o que aconteceu com Eternos, dirigido pela oscarizada Chloé Zhao (Nomadland), roteirizado pela própria em parceria com Patrick Burleigh, Ryan e Matthew K. Firpo, e atualmente em cartaz nos cinemas. Injusto porque, dentre méritos e deméritos, um ponto a se destacar é que esse é o filme da Marvel que possui mais alma e sentimento.

Além de ser um épico de fantasia exuberante que, a exemplo de grande parte dos títulos do MCU, não falha no departamento visual, Eternos traz momentos cômicos orgânicos e bem pontuados, uma história de amor comovente e sem pieguices, introduz um casal com ótima química e potencial, apresenta um desenvolvimento robusto de personagens e uma trama bastante sólida. Sem falar que aposta em um elenco mais diverso e em representatividade genuína. Aliás, a representatividade não está sendo abordada apenas para mostrar que a Marvel está cumprindo uma obrigação e fazendo o mínimo que se espera de uma grande empresa.  A questão surge na narrativa de maneira natural, como deve ser. Demorou, mas finalmente o MCU está dando sinais de que pode se tornar cada vez mais inclusivo.

Esse tópico da diversidade, já pincelado em algumas tramas e até mais aprofundada em outras produções da casa, como Pantera Negra, cairia muito bem na introdução dos X-Men no MCU, mas funciona plenamente com um time de heróis mais desconhecido do grande público, como é o caso de Eternos. Revelados nas páginas dos quadrinhos do lendário Jack Kirby, os Eternos apareceram pela primeira vez em julho de 1976 e tiveram nítida inspiração em deuses mitológicos. Aportaram no Brasil em edições de revistas como Grandes Heróis Marvel e Superaventuras Marvel, que compilavam histórias de diferentes personagens da Casa das Ideias em um único volume, e foram vítimas do padrão dessas publicações da Editora Abril, que traziam as tramas mutiladas, o que tornava difícil de acompanhar e de fidelizar um público.

Em sua mitologia, os Eternos foram criados pelos deuses cósmicos conhecidos como Celestiais e trazidos para junto da humanidade a fim de protegê-la dos Deviantes – também criações dos Celestiais, mas que precederam os Eternos. A princípio, os Deviantes eram enviados para planetas povoados a fim de destruir os predadores locais e garantir a evolução e o desenvolvimento da espécie dominante desses mundos. Porém, por alguma falha não prevista pelos seus criadores, os Deviantes evoluíram e passaram a caçar as populações dos planetas, daí a necessidade da criação de sua contraparte do bem, os Eternos, para combatê-los. A trama do longa tem início em 5000 A.C., quando dez Eternos originários do planeta Olympia, com aparência e características humanas, mas dotados de superpoderes, são enviados pelo Celestial Arishem para a Terra, a fim de neutralizar invasores Deviantes.

A missão dos heróis, portanto, é proteger a população dessas criaturas. No entanto, eles não podem, sob nenhuma circunstância, interferir na evolução natural da humanidade. Ou seja, eles possuem os recursos e poderes para evitar conflitos, guerras e outros ideais de autodestruição tão curiosamente inerentes à natureza do ser humano, mas são proibidos de fazê-lo. Isso traz à tona problemas dentro do grupo devido à divergência de opiniões éticas e morais entre seus integrantes, o que provoca uma cisão no time após a derrota dos últimos Deviantes em 1500. A história avança mais de quinhentos anos no futuro e descobrimos que os Eternos passaram os últimos cinco séculos separados uns dos outros, aguardando pelo momento em que deverão ser enviados de volta ao seu planeta de origem. No entanto, quando duas Eternas são atacadas por um Deviante em Londres, onde residem na atualidade, elas precisam reunir o grupo novamente, porém, vão se deparar não apenas com a relutância de alguns antigos companheiros, mas também com terríveis surpresas.

O propósito dos Eternos na Terra pode não convencer a princípio. Até mesmo um dos personagens humanos pergunta por que eles não ajudaram a impedir Thanos, por exemplo. Já um dos Eternos mostra nitidamente sua angústia, insatisfação e revolta por não poder interferir em eventos que podem culminar na destruição da humanidade causados pelos próprios seres humanos. Conforme a história avança, contudo, o propósito fica mais bem definido e até mesmo o equilíbrio entre as criações e a real natureza da proposta dos Celestiais é bem fundamentada. Óbvio que é necessário comprar a ideia e ter em mente que se trata de uma história fantástica que teve origem nos quadrinhos. Mas para quem vem acompanhando, desde 2008, os 26 filmes da Marvel, não é uma tarefa das mais difíceis. O saldo final do longa é bastante positivo. Eternos é imprevisível e envolvente. Um bom entretenimento que não foge do senso de diversão, mas consegue ir além disso, felizmente.

O ritmo da história é mais lento e, ainda que o roteiro seja mais expositivo, certas passagens não deixam de soar confusas. É necessário manter os olhos atentos na estrada para absorver todas as informações. Outro ponto fraco são as lutas – as cenas e as coreografias dos embates corporais são bem pouco memoráveis, não tendo exatamente um grande momento a se destacar; e o fato de os Eternos e os Deviantes serem quase invencíveis e onipotentes, geram sequências megalômanas, mas sem um grande clima de tensão. Por vezes, elas são até um tanto tediosas ao invés de marcantes. Os momentos de humanidade e intimidade dos personagens são mais interessantes do que as cenas de luta, o que é um ponto desfavorável para um filme de ação e fantasia. Outro fator que prejudica um pouco o andamento da história, são os constantes flashbacks, inseridos de modo que quebra o crescendo da narrativa. Nesses dois quesitos, Eternos fica devendo ao longa anterior do MCU, Shang-Chi, que trabalha muito melhor esses dois aspectos. Mas o supera no que diz respeito à profundidade emocional.

Contrariando a opinião de muitos críticos e detratores do longa, considero um acerto a construção de personagens e também pontuo que eles foram defendidos de maneira muito competente por um elenco formado por atores carismáticos e que levam a sério seus papéis. Há nomes conhecidos como Angelina Jolie (Thena), Salma Heyek (Ajak), Richard Madden (Ikaris), Gemma Chan (Sersi), Kit Harington (Dane Whitman), além de Kumail Nanjiani (Kingo), Lia McHugh (Duende), Brian Tyree Henry (Phastos), Don Lee (Gilgamesh) e especial destaque para Lauren Ridloff (Makkari) e Barry Keoghan (Druig), dois dos melhores em cena.

Sem dúvidas, dos títulos da Marvel Studios, esse é um dos mais diferentes em estilo e narrativa. Além de tudo o que já foi exposto aqui, o longa traz uma sugestão de cena de sexo e um casal gay que vive uma relação estável, com direito a beijo. Ainda faz referências aos heróis da rival, DC, e a, hoje companheira de casa, Star Wars, em linhas de diálogo bem-humoradas. Para arrematar, mostra destemidamente a morte de personagens centrais do longa – e não apenas por shock value como tantas e tantas produções pós-Game of Thrones. Vai ser interessante vê-lo se conectar ao todo. E a despeito das críticas negativas, é ótimo ver um título do MCU que não teme se arriscar e fugir da consagrada fórmula perpetuada em mais de vinte filmes.

Andrizy Bento

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