A indústria do videoclipe atingiu seu apogeu na década de 1990, ao contar com talentosos e imaginativos diretores por trás dos vídeos utilizados para promover canções de bandas e artistas – tanto os já consagrados, quanto os que despontavam no cenário musical. Em minha sombria opinião, creio que foi nessa década, também, que o videoclipe alcançou todo o seu potencial, ganhando um boost na produção ao contar com mais recursos e bons orçamentos – diferentemente dos charmosos trash da década de 1980, realizados com muita criatividade, baixíssima verba e, às vezes, um gosto duvidoso.
Creio também que os anos 1990 foram os últimos a cultuar a arte do videoclipe e a ver esta mídia como uma importante ferramenta de divulgação de um material de um artista. Isso quando a MTV ainda era uma emissora musical e era atribuída ao vídeo a garantia de engajamento de um músico ou de uma banda. Hoje, existem outras ferramentas, novos recursos, redes sociais… Para que fazer um videoclipe de porte cinematográfico, quando se pode viralizar em poucos minutos com um vídeo feito de qualquer jeito no celular e postado no TikTok? Obviamente, houve artistas que fizeram esforços hercúleos para manter a relevância do videoclipe, como Lady Gaga, Beyoncé e tantos outros. Mas não se fala mais de clipes como se falava na época de ouro das MTVs (tanto a americana, quanto a brasileira, em sua era Abril).
Mas por que toda essa nostalgia pessimista, de repente? Porque vamos falar de um clássico incontestável do final da década de 1990. Sim! A caixinha de leite senciente do melancólico Coffee And TV do Blur, expoente do britpop daquela década, arrebatou corações e tornou-se um fenômeno cultural.
O vídeo de seis minutos, dirigido por Garth Jennings, lançado em 23 de março de 1999 no Reino Unido, contou com a produção de Nick Goldsmith, fotografia a cargo de Igor Jadue-Lillo, e a Jim Henson’s Creature Shop ficou encarregada dos efeitos especiais. O clipe acompanha uma caixinha de leite “viva” em uma dura jornada em busca do membro desaparecido de uma família que, por acaso, é Graham Coxon, guitarrista do Blur e que assume os vocais dessa canção. Seus pais e irmã aparecem esperançosos olhando pela janela e ao lado do telefone, esperando por um avistamento ou notícias do músico que desapareceu e ilustra a lateral da caixa de leite que protagoniza o clipe. Para animá-los, a caixinha conhecida como Milky executa alguns passos de dança em frente aos membros da família, que simplesmente ignoram sua presença e o fato curioso que um objeto inanimado adquiriu vida própria e está se movendo diante deles. Vendo que suas tentativas de divertir a família Coxon são infrutíferas, ele parte em busca de Graham, enfrentando os, até então, desconhecidos desafios e perigos de uma megalópole, até encontrá-lo – depois de uma série de desafortunados eventos – tocando com os outros integrantes do Blur.
Em seu caminho, Milky cruza com pessoas mal-educadas, agressivas, crianças impertinentes, garrafas assustadoras e se apaixona à primeira vista por uma caixinha de iogurte que tem um trágico desfecho. Ao final, Coxon volta para casa depois de ver sua foto estampada na lateral de Milky e se dar conta que seus familiares estão preocupados com ele. Seus pais parecem empolgados com o seu retorno ao ouvir o filho desaparecido abrir a porta. Antes de entrar em casa, porém, Coxon bebe o leite da caixinha e a arremessa na lata de lixo. Em seus últimos momentos de vida, Milky acena, despedindo-se do público, e sobe para o céu com asas de anjo, reencontrando a caixa de iogurte por quem tinha se apaixonado.
A caixinha de leite do clipe do Blur atraiu a atenção de diferentes faixas etárias. Tão fofa e encantadora que conquistou muito mais do que o público infantil.
A música Coffee And TV leva a assinatura de Graham Coxon que, além de ser um dos protagonistas do vídeo, também canta os vocais principais ao invés do frontman da banda, Damon Albarn. A faixa foi incluída no sexto álbum de estúdio do Blur, intitulado 13, um disco que mescla estilos bem variados, mais experimental e psicodélico em termos sonoros e com faixas tristes, densas e cerebrais. Muitas delas, baseadas no término do relacionamento entre Albarn e a vocalista da banda inglesa Elastica, Justine Frischmann. Coffee And TV é uma das canções que evoca mais a atmosfera dos trabalhos anteriores da banda; ainda assim, em sua letra não deixa de possuir a profundidade do restante do álbum, ao descrever a luta de Coxon contra o alcoolismo.
Este foi o segundo single do disco que, além de resultar em um videoclipe premiado e memorável, ficou relativamente bem colocado nas paradas de sucesso, ocupando a 11ª posição no Reino Unido em julho de 1999, e chegando ao 26º lugar na Irlanda. Também foi um hit de sucesso na Islândia, onde atingiu a posição de número 2 nos charts em setembro de 1999. O empresário da banda, Chris Morrison, acreditava que a música havia sido privada de um lugar no top 10 do Reino Unido depois que se confirmou a informação de que alguns números de vendas do single não foram registrados.
Para promover o single, o quarteto britânico encomendou com a Hammer & Tongs (pseudônimo atribuído ao duo formado pelo diretor Garth Jennings e produtor Nick Goldsmith) a produção de um vídeo que correspondesse à carga emocional da composição de Coxon. O vídeo ganhou diversos prêmios entre os anos de 1999 e 2000, incluindo Melhor Vídeo no NME Awards (entregues pela revista britânica New Musical Express Awards aos artistas que mais se destacaram ao longo do ano na indústria fonográfica) e no MTV Europe Music Awards, conhecida pelo acrônimo EMA’s (premiação musical anual da MTV Europeia). Em 2002, o vídeo foi classificado como o quarto melhor vídeo de todos os tempos pela VH1 (canal de TV por assinatura americano, com conteúdo focado em música e entretenimento). Em 2005, Coffee And TV foi eleito o 17º melhor vídeo pop de todos os tempos em uma pesquisa realizada pela emissora britânica de TV aberta Canal 4. Em 2006, a Revista Stylus o classificou como o nº 32 em sua lista dos 100 Melhores Vídeos Musicais de Todos os Tempos e, em uma pesquisa similar, a NME o elegeu como o 20º maior vídeo musical da história. Em 2011, a Revista Time elaborou uma lista contendo os trinta melhores videoclipes de todos os tempos e Coffee & TV ocupou a 17ª colocação. O clipe foi intensamente veiculado nas MTVs ao redor do globo, com destaque para a MTV US e a MTV Brasil.
O modelo de Milky utilizado no videoclipe foi vendido em um leilão de souvenirs do Blur ainda em 1999. Em 12 de agosto de 2012, quando o Blur tocou no show de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, no Hyde Park, os fãs que adquiriram uma camiseta da banda ganharam de brinde uma réplica da embalagem de leite Milky.
Além do álbum 13, a música ainda integrou a compilação Best Of Blur, lançada em 2000. Também compôs a trilha sonora do drama adolescente Segundas Intenções, que estreou no mesmo ano de lançamento de Coffee And TV. A canção ainda pode ser ouvida durante o episódio “Pine Barrens”, na terceira temporada da cultuada série The Sopranos da HBO.
O multifacetado e criativo Garth Jennings divide seu tempo entre as funções de diretor, roteirista, produtor, ator e escritor. Entre seus créditos na direção de clipes, estão Freedom de Robbie Williams, Right Here Right Now do Fatboy Slim, Pumping on Your Stereo e Low C do Supergrass, o também histórico Imitation of Life do R.E.M., a primeira versão de Lost Cause do Beck, além de Jigsaw Falling Into Place, Nude e Lotus Flower do Radiohead. Como cineasta, Jennings se aventurou a levar o criativo e cômico universo de Douglas Adams da literatura para as telonas, com o filme O Guia do Mochileiro das Galáxias de 2005. Dirigiu ainda o misto de aventura, comédia e drama O Filho de Rambow de 2007, a animação Sing: Quem Canta Seus Males Espanta de 2016, bem como sua continuação que leva o título provisório Sing 2 e deve estrear aqui no Brasil ainda em dezembro deste ano.
Quanto ao Blur, a banda ainda existe, completando 32 anos desde sua fundação em 1989, embora não esteja exatamente “na ativa” como os fãs gostariam. Após algumas separações e intervalos para cuidar de outras atividades (culinárias e até políticas), a formação original se reuniu novamente em 2015 para gravar seu oitavo álbum de estúdio, o The Magic Whip. A banda tem estado praticamente parada desde então, a não ser por uma ou outra apresentação surpresa. O baterista Dave Rowntree – que, durante uma das pausas do grupo, investiu em sua carreira como advogado criminalista, filiou-se ao partido trabalhista britânico e concorreu ao cargo de vereador em 2010, mas não conseguiu se eleger – afirmou recentemente que toda a banda deseja retornar às atividades assim que a pandemia global de Coronavírus der uma trégua.
Damon Albarn, que ainda lidera o grupo Gorillaz e não abriu mão de seus projetos solo, bem como os outros integrantes do Blur, também expressou a vontade em voltar a tocar com sua banda de origem durante uma entrevista à NME, datada de junho deste ano. O vocalista disse que mantém contato com seus colegas e afirmou que estava ocupado no momento com outros afazeres, mas que já tinha algumas ideias fervilhando em mente para o Blur. Graham Coxon, no entanto, em entrevista à mesma NME, em agosto, descartou qualquer possibilidade de uma reunião da banda em curto prazo, mas afirmou que isso ainda pode acontecer em um momento no futuro. O músico disse que não pareceria genuíno retornar aos palcos apenas para fazer alguns shows. Que a banda precisa realmente de algum tipo de foco, de uma motivação maior para se reunir em estúdio e desenvolver um novo trabalho. De qualquer modo, é normal o grupo fazer pausas estratégicas para evitar o desgaste da imagem. Eles estão em um momento tranquilo, diferente de outrora, das agressivas disputas com o Oasis durante a década de 1990.
Graham Coxon tem investido seu tempo e talento na elaboração de trilhas sonoras. Ele foi o responsável pelas canções originais e pelo score de The End of the F***ing World e pela trilha de I Am Not Okay With This, ambas produções disponíveis na Netflix. Na mesma entrevista concedida à NME, o guitarrista deu detalhes sobre sua graphic novel de ficção científica, Superstate – projeto desenvolvido em parceria com os roteiristas Alex Paknadel e Helen Mullane, que traz quinze histórias diferentes, cada uma delas embalada por uma canção original composta e gravada pelo guitarrista e acompanhada por vocalistas adicionais. Superstate foi lançada internacionalmente em 20 de agosto e ainda não há previsão de quando o livro distópico de Coxon chega ao Brasil. Damon Albarn lançou, em outubro do ano passado, a nova música do Gorillaz, intitulada Song Machine, Season One: Strange Timez. Segundo o próprio, uma “Season Two” está a caminho. Quanto aos outros integrantes, David Rowntree continua investindo em sua carreira política. O baixista Alex James, por sua vez, é produtor de queijos.
O fato é que o final daquela gloriosa década de 1990 nos trouxe videoclipes históricos e marcantes, como o Coffee And TV do Blur, estrelado pela nossa adorada e carismática caixinha de leite. Confira as aventuras de Milky na cidade grande em busca do desaparecido Graham Coxon no cultuado Coffee And TV.
😉
Andrizy Bento