Conhecido do público brasileiro que consumia as histórias da Marvel na época dos formatinhos como Mestre do Kung Fu, Shang Chi enfim ganhou as telas estrelando um dos mais competentes e bem realizados filmes de origem da Marvel Studios. O personagem criado em 1973, durante a Era de Bronze dos Quadrinhos, por Steve Engleheart e Jim Starlin viveu seu auge naquela década, devido à popularidade desfrutada por filmes e seriados de artes marciais. Por aqui, o herói foi visto estrelando diversas aventuras em publicações hoje extintas como Grandes Heróis Marvel, Superaventuras Marvel e Heróis da TV – que traziam compilações de histórias avulsas mutiladas dos personagens da Casa das Ideias. No entanto, em sua mídia de origem, Shang-Chi foi relegado ao ostracismo. Com a estreia de seu longa, esse cenário muda, fazendo o personagem voltar a figurar no imaginário dos MCU Stans, convertendo-se no primeiro herói asiático da Marvel a protagonizar um filme solo do estúdio.
Há milhares de anos, Xu Wenwu (Tony Leung), encontrou e se apossou dos dez anéis – artefatos mágicos capazes de conceder imortalidade e grande poder a seus usuários. Logo após, reuniu um exército ao qual denominou, também, de Dez Anéis e, ao longo da história, conquistou diversos reinos e derrubou governos. Em 1996, Wenwu começa a procurar por Ta Lo, um vilarejo que, segundo lendas, abriga criaturas míticas. O seu propósito é conquistar essa terra a fim de expandir ainda mais o seu poder. Ao viajar pela floresta mágica que dá acesso à aldeia, conhece o perigo de uma espécie de labirinto vivo, utilizado para não permitir a entrada de forasteiros no vilarejo de Ta Lo. Ele sobrevive ao labirinto, mas é impedido de entrar na aldeia pela guardiã do local, Ying Li (Fala Chen). Ela derrota Wenwu em uma luta, sendo a única a conquistar esse feito, e é durante esse embate físico que os dois se apaixonam. Como os aldeões rejeitam Wenwu, alegando que ele não é digno, Li deixa o povoado ao lado dele para formar uma família. Ambos têm dois filhos, Shang-Chi e Xu Xialing (interpretados respectivamente por Simu Liu e Meng’er Zhang na idade adulta). Wenwu abre mão do poder dos anéis e da liderança de sua organização em prol da felicidade de uma vida doméstica.
No entanto, uma tragédia envolvendo Li, arquitetada pelos inimigos de Wenwu, faz com que ele volte a assumir os anéis e liderar seu exército em busca de vingança. Ele inicia seu filho, Shang-Chi, de apenas 7 anos em um treinamento brutal de artes marciais e, ao completar 14, o garoto é enviado para a execução do líder da quadrilha a fim de vingar sua mãe. Traumatizado e não desejando se converter em um assassino frio e cruel, Shang-Chi foge, muda de identidade para que seu pai não possa localizá-lo e passa a levar uma vida pacata na América, atuando como manobrista ao lado da melhor amiga, Katy (Awkwafina), em São Francisco. Após ser abordado em um ônibus a caminho do trabalho por homens que o ameaçam em troca do pingente que Shang-Chi carrega no pescoço, ele viraliza na internet ao derrotar toda a gangue em uma luta violenta dentro do veículo, mas perde o pingente. Temendo que os mesmos homens vão atrás do pingente de sua irmã – que ele abandonou ao dar as costas à sua antiga vida – Shang-Chi retorna ao seu país natal, revelando sua verdadeira identidade à Katy e disposto a confrontar os fantasmas de seu passado.
A narrativa fantástica versa sobre poder, magia e ancestralidade, reservando um espaço considerável para discutir ambição e vingança. As subtramas são bem costuradas ao plot central, mesclando ação e fantasia e o toque de humor característico das produções Marvel. Embora, deva admitir, a fantasia é um tanto pueril em certas passagens e o arco fantástico poderia ser mais aprofundado. No entanto, a ação é empolgante. As bem executadas sequências de luta e o emprego preciso do CGI garantem um visual exuberante. Shang-Chi é certeiro na construção de imagens impressionantes.
Em termos narrativos, o longa apropria-se sabiamente de referências e elementos de épicos chineses de artes marciais. Um exemplo é a bela sequência de embate entre Wenwu e Li, quando os personagens se encontram pela primeira vez, no melhor estilo Wuxia. Este se trata de um gênero chinês tanto literário quanto cinematográfico, onde a fantasia encontra as artes marciais e lutas de espadas ocorrem em mundos medievais situados em planos fantásticos. O conceito da luta se aproxima da coreografia de uma dança, com movimentos precisos e suaves.
Ainda assim, no resultado final, a nova aventura do MCU se aproxima mais do cinemão americano do que de exemplares chineses do gênero fantasia, como os êxitos O Tigre e o Dragão e O Clã das Adagas Voadoras ou o belíssimo Herói. Talvez por isso mesmo, a crítica americana tenha sido tão taxativa nas comparações com O Senhor dos Anéis – pelo simples fato de o filme contar com uma batalha épica no clímax, dragões e lutas com arco e flecha. O que prova o quanto a crítica americana tem um repertório de referências bastante limitado… O fato é que poderia ter abraçado mais o conceito de filmes fantásticos chineses e não se preocupar tanto em seguir a cartilha da grife Marvel. O longa não frustra exatamente o espectador que nutria expectativas quanto a um longa que fugisse da zona de conforto, mas, aqui e ali, nota-se como a produção poderia ter sido mais audaciosa.
Simu Liu, o intérprete de Shang-Chi, é bastante competente como herói de ação e mostra uma ótima presença de cena. Felizmente, cumpre bem seu papel o que evita que acabe eclipsado por um personagem com uma natureza mais interessante e elaborada do que o herói que dá título ao longa. Originalmente, Shang-Chi era filho de Fu Manchu nos quadrinhos. Um personagem egresso da literatura pulp de Sax Rohmer. Com o passar do tempo, percebeu-se o quanto o tipo era problemático em vários aspectos, sendo um personagem constantemente associado a estereótipos racistas. Além disso, a Marvel Studios não detém os direitos cinematográficos de Fu Manchu para reinventá-lo e redimi-lo. Dessa forma, o longa faz do obstáculo uma oportunidade, e aproveita para consertar dois equívocos de uma só vez.
Explico: um dos vilões mais emblemáticos das histórias em quadrinhos estreladas pelo Homem de Ferro, o Mandarim, ganhou uma releitura duvidosa e bastante controversa no terceiro longa do Vingador Dourado – lançado em 2013 – que enfureceu os fãs. No enredo, o ator Trevor Slattery (vivido por Ben Kingsley) havia sido contratado para se passar pelo terrorista, em uma crítica ao estereótipo racista com que o personagem era retratado em sua mídia original. Esse foi o grande plot twist de Homem de Ferro 3 e o produtor e hoje manda chuva da Marvel, Kevin Feige, defendeu a decisão criativa, alegando que o Mandarim não possui, de fato, uma história definitiva de origem nas HQs. Mesmo repleta de boas intenções, a caracterização do personagem não agradou. E aqui, Kingsley até brinca com o fato, fazendo uma espécie de mea culpa.
Ao introduzir um personagem original em Shang-Chi, concebido para ser o pai do protagonista na versão cinematográfica da lenda do herói, o roteiro elaborou um dos mais interessantes backgrounds e compôs um vilão tridimensional que, para completar, é interpretado pela lenda viva Tony Leung. O astro de 59 anos é um dos maiores ícones do cinema chinês e aqui dá vida a Wenwu. Em certa passagem do filme, ele explica que já foi conhecido por algumas alcunhas ao longo dos séculos, inclusive a de Mandarim. Posteriormente, descobrimos que ele mantém cativo Trevor Slattery por ter assumido sua identidade e vendido sua imagem como um terrorista para o mundo ocidental. O roteiro de Shang-Chi é tão cuidadoso na construção de Wenwu, que torna o personagem passível de identificação. Jamais justificando suas ações, mas fazendo com que possamos compreender suas motivações. O personagem é movido genuinamente pelo luto. É essa a mola propulsora de sua vingança.
Outra personagem que se destaca muito além do que uma mera coadjuvante do herói, é a sua irmã, Xialing, vivida com eficiência por Meng’er Zhang e também criada especialmente para o filme. Nos quadrinhos, o herói possui cinco irmãs. Xialing seria uma amálgama de todas elas no filme. Além de protagonizar grandes sequências de luta, o carisma e a humanidade da personagem cativam a atenção do espectador.
Apesar de ser um longa introdutório ao universo de Shang-Chi, não recorre ao excesso de exposições e a história de origem do herói é apresentada gradativamente, com inserções de flashbacks pontuais, evitando entregar tudo de uma vez e mantendo certa aura de mistério até determinado ponto sobre a tragédia envolvendo sua mãe e sua decisão de fugir do império erguido por seu pai. Nem tão pontuais são as cenas de humor. Há, sim, muitas sequências engraçadas, mas algumas são mal inseridas. A piada em torno do Mandarim faz rir até certo ponto. Só não chega a incomodar ou resultar em bocejos devido ao bom trabalho desempenhado por Kingsley. Awkwafina, na pele de Katy, ganha destaque como alívio cômico, contudo, no clímax estrela seu momento de heroína improvável e, ao que tudo indica, tem grandes chances de ser incorporada aos Vingadores como sidekick de Shang-Chi. E se as próximas aventuras evitarem situar o relacionamento dos personagens em um plano romântico, finalmente teremos a chance de testemunhar uma excelente amizade entre gêneros opostos sendo construída nas telas – algo ensaiado e quase alcançado por Viúva Negra e Gavião Arqueiro.
Dirigido pelo cineasta havaino que tem poucos créditos na direção de longas – sendo eles O Castelo de Vidro (2017) e Luta por Justiça (2019) – o realizador até surpreende, considerando seu currículo pouco extenso. O cast é formado por atores, em sua maioria, chineses ou com ascendência chinesa. Além dos citados, completam o elenco Michelle Yeoh como Jiang Nan, a tia de Shang e Xialing; e o sempre ótimo Benedict Wong como Wong, egresso do longa do Doutor Estranho. Em outros tempos, provavelmente, teríamos atores japoneses, coreanos e taiwaneses interpretando chineses, pois era assim que Hollywood fazia questão de demonstrar sua completa ignorância. Portanto, nem vou dizer que a escalação de um elenco que corresponde à natureza e origem dos personagens é um acerto da Marvel Studios, pois não se parabeniza uma companhia por fazer o mínimo que se espera dela…
No mais, o longa abusa da trilha sonora em algumas passagens, mas nada que efetivamente comprometa. Com mais acertos do que erros, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis diverte, empolga e introduz novos e carismáticos personagens ao Universo Cinematográfico da Marvel. Como em toda produção do MCU, tem uma cena escondida no meio dos créditos que funciona mais como um “bem-vindo ao time”; e outra pós-créditos que abre possibilidades interessantes para aventuras vindouras. Vale a pena conferir.
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis”