Previsto para estrear originalmente em abril de 2020 nas salas de cinema, Viúva Negra sofreu adiamentos devido à pandemia de Covid-19 que obrigou os multiplex e vários outros estabelecimentos a fecharem as portas temporariamente a fim de evitar aglomerações e, portanto, preservar a saúde e segurança da população. A ansiedade resultante dos constantes reagendamentos da estreia fez com que as expectativas dos fãs com relação ao longa se tornassem cada vez mais altas, já que eles mal podiam esperar para conferir a integrante original dos Vingadores ganhar o tão merecido protagonismo. Todas essas situações de adiamento e espera poderiam ser fatores prejudiciais para seu desempenho nas telas (o longa poderia não corresponder às expectativas depositadas pelos fãs), mas ainda havia outro complicador: o timing de lançamento dentro da cronologia do MCU, independente de pandemia, parecia inadequado após o desfecho trágico de Natasha Romanoff em Vingadores: Ultimato.
Entretanto, esse ainda se tratava de um aspecto contornável, bastava que os produtores e roteiristas tivessem acertado na tônica e abordagem assumidas pela produção. Viúva Negra seria um tributo à heroína abatida, com um provável sabor agridoce de encerramento do arco da vingadora; ou exploraria sua origem e legado de modo a dar continuidade com outra personagem assumindo seu posto, considerando que Natasha foi uma das várias meninas treinadas na Sala Vermelha no Programa Operação Viúva Negra? As perguntas são devidamente respondidas no filme que segue, sabiamente, pelos dois caminhos.
Como ainda estamos atravessando um momento pandêmico, a solução para Viúva Negra enfim ganhar as telas, foi lançá-lo simultaneamente nos cinemas e na plataforma Disney+ – claro que, no streaming, ele ainda não está disponível para todo e qualquer assinante, podendo ser conferido por um valor adicional. Dessa forma, aqueles que não podem ir ao cinema e não se rendem aos meios ilegais, têm de desembolsar alguns reais a mais para ter o acesso premium. É o modo que a casa do Mickey encontrou de não sair no prejuízo.
Para quem já conhece um pouco do background da personagem, o filme protagonizado por ela é facilmente entendível e não necessita de muitas exposições, escapando do caráter didático de grande parte das produções solo de origem. Para quem não se lembra do momento em que ela revela brevemente seu passado em Vingadores: Era de Ultron, basta ter em mente que Natasha foi treinada na Sala Vermelha (programa desenvolvido por uma organização da União Soviética), juntamente com outras jovens órfãs para o combate e espionagem. Lá, também foi biológica e psico-tecnologicamente aprimorada. Bem como as demais garotas, ainda teve de passar por um procedimento invasivo de histerectomia, de modo que pudessem evitar distrações e “obstáculos” em seu trabalho como espiãs.
Tornando-se o “projeto” mais bem-sucedido desenvolvido pelo Programa Operação Viúva Negra, ela passou a figurar como uma ameaça à segurança global e entrou no radar da S.H.I.E.L.D. Nick Fury envia o agente Clint Barton, conhecido pela alcunha de Gavião Arqueiro para matá-la, mas reconhecendo seu potencial, habilidades e destreza, Clint recua em sua missão e aconselha Fury a integrá-la à SHIELD. Trabalhando juntos, Natasha e Barton desenvolvem um vínculo poderoso de cumplicidade e uma ótima dinâmica de equipe, o que os leva a uma missão em Budapeste, citada primeiramente no longa original dos Vingadores (2012) e finalmente explicada no filme solo da Viúva Negra. Aliás, no primeiro longa da equipe, pudemos testemunhar a trajetória de Natasha de agente da SHIELD à Vingadora.
Nem vou entrar no mérito de que uma personagem tão fascinante e que, para completar, foi intensamente ativa e onipresente em filmes pregressos do MCU, merecia um longa individual muito antes; pois, teria de considerar as perspectivas mercadológicas de bem poucos anos atrás, quando executivos de estúdios eram terminantes em afirmar, sem nem ao menos fazer alguma tentativa, que filmes solo de heroínas (ainda mais uma relativamente desconhecida do público que não consome HQs) não seriam capazes de render altas cifras como as produções protagonizadas por personagens do gênero masculino e já familiares ao público, a exemplo de Homem de Ferro, Thor e Capitão América.
Antes tarde do que nunca, pelo menos.
Viúva Negra agrada e empolga quem curte a fórmula da Marvel Studios e surpreende quem assiste de maneira descompromissada. O longa protagonizado por Scarlett Johansson consegue ir um pouco além de apenas um bom entretenimento de fim de semana, com uma trama sólida, ritmo fluido, resultando em uma eficiente tradução da heroína dos quadrinhos para as telas.
A narrativa começa em 1995, quando Natasha e sua “irmã”, Yelena, têm suas infâncias interrompidas, ingressando forçosamente em uma iniciação cruel que visa transformá-las em assassinas perfeitas. O prólogo se concentra na falsa família infiltrada em Ohio, composta pela jovem Natasha Romanoff, a irmã caçula Yelena Belova, o pai Alexei Shostakov (conhecido como o Guardião Vermelho), e a ex-viúva negra Melina Vostokoff que assume o papel de mãe das garotas. Esses minutos iniciais já deixam aparente que Natasha tem conhecimento de que aquele núcleo familiar no qual está inserida é fake. Mas Yelena, de apenas seis anos, não faz a menor ideia. Posteriormente, durante os créditos iniciais, temos lampejos do treinamento e da rotina brutal aos quais Natasha, Yelena e outras órfãs são submetidas, destacando que a missão das jovens mais aptas é converterem-se em espiãs e assassinas, enquanto as demais são friamente executadas. O começo sombrio é embalado por um cover inusitado de Smells Like Teen Spirit do Nirvana. O clássico é interpretado por Malia J em uma toada bastante melancólica que corresponde perfeitamente às imagens mostradas na tela.
Vinte e um anos depois, vemos Natasha escapando dos homens do General Ross que a acusa de violar o Tratado de Sokovia e ferir o rei de Wakanda. A vingadora é bem-sucedida em sua fuga e retira-se para um lugar isolado a fim de permanecer reclusa por um tempo. No entanto, seus planos não saem exatamente como ela desejava e seu caminho se cruza novamente com o de Yelena e de seus pais adotivos, aos quais ela deve se unir a fim de executar um nova missão: ir atrás de um fantasma do passado do qual ela acreditava já ter se livrado há anos. Ninguém menos do que Dreykov, o líder da Sala Vermelha que, para surpresa de Nat, continua ativa. O filme narra o que houve com Natasha durante esse período em que permaneceu afastada dos Vingadores e foi para Budapeste confrontar seu seus temores – situando-se entre os eventos de Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Guerra Infinita. Sem muitos spoilers: a localização da Sala Vermelha é um achado e todo o plano para derrotar o responsável pelo programa é bem orquestrado na tela.
A produção é recheada de sequências de explosões, tiros, perseguições por terra e ar e muita pancadaria para deleite dos fãs do gênero. As cenas de ação são bem conduzidas e, apesar de toda a pirotecnia e situações surreais, não apenas funcionam como conseguem soar bastante plausíveis dado o acuro da direção de fotografia, desenho de produção e do preciso emprego dos efeitos especiais. Se há algum demérito no departamento visual, está no fato de a Marvel Studios insistir em apresentar cenas de luta com demasiados cortes, o que tira um pouco da ‘magia’ desse tipo de sequência. O espectador tem a ciência de que os embates corporais ilustrados na tela tratam-se de pura coreografia e são resultantes de um árduo trabalho de montagem, não transmitindo a sensação de legitimidade esperada. Todavia, o clímax ágil e eletrizante mais do que compensam essa deficiência.
Além de contar com bons acréscimos ao elenco, cuja presença que mais se destaca é a de Florence Pugh que interpreta Yelena, além de nomes como Rachel Weisz e David Harbour, a inserção do personagem Taskmaster (traduzido como Treinador nas HQs em português), agrada aos fãs de quadrinhos, ainda que apareça no longa com identidade e background bem diferentes das de sua contraparte na mídia original. E obviamente, há numerosas referências aos Vingadores.
Embora seja um espetáculo visual e sonoro, o que realmente se sobressai em Viúva Negra é o fato de o filme humanizar a protagonista. O roteiro explora muito mais do que seu lado vingadora, propondo um mergulho em sua psique e deixando bem aparente os esforços descomunais que ela faz em ordem de manter seu emocional estável, ainda que este esteja comprometido. Contudo, não deixa de manter alguns de seus sentimentos nebulosos, considerando que o mistério é parte essencial do charme da personagem. Ao introduzir o plot da família de Natasha, mesmo que se trate de uma família fake, temos acesso à intimidade da heroína de um modo que ainda não havíamos tido a oportunidade em longas que o precederam na cronologia do MCU. E, felizmente, é um plot que não soa artificial.
De forma bastante sutil, pontual e orgânica, a produção ainda lança luz sobre questões pertinentes e atuais, como o papel da mulher na sociedade, o insistente controle sobre nossos corpos, comportamentos os e questionamentos diante de nossas condutas, o quão valiosa é nossa autonomia e poder de escolha, bem como a representação das super-heroínas na cultura pop. O longa até se permite um momento de autossátira, como quando Yelena zomba da pose de Natasha para lutar – o modo característico de jogar o cabelo para trás em câmera lenta, que se trata de pura estética, mas tornou-se algo emblemático da personagem, visto pela primeira vez no hoje longínquo Homem de Ferro 2, lançado em 2010. O melhor? Aborda pautas fundamentais com relação ao espaço e representação da mulher, mas passando bem longe do discurso panfletário.
O resultado é um bom thriller de espionagem e ação, que coloca em evidência temas atuais e relevantes, e retrata na tela tanto o que faz de Natasha Romanoff uma lutadora poderosa e perspicaz, quanto uma pessoa sensível e, por vezes, vulnerável. Dirigido, roteirizado e protagonizado por mulheres, o longa de Cate Shortland, escrito por Jac Schaeffer é um filme feito especialmente para os fãs da heroína, mas não se limitando a uma “carta de amor” destinada a eles.
Há um anacronismo na origem da espiã – aspectos de sua história que conflitam com o que já foi apresentado sobre ela em filmes predecessores da estrutura MCU – para o qual é difícil fazer vista grossa. E o longa também tem aquele jeito de “meio do caminho” como a maioria esmagadora das produções da Marvel Studios – a aventura isolada que não faz tanta diferença no todo. Assim são também os outros filmes solo dos heróis da Marvel, como os do Thor, Homem-Aranha e mesmo os longas protagonizados pelo Homem de Ferro. No entanto, Viúva Negra tem um enredo muito mais consistente do que os filmes do Homem Formiga ou da Capitã Marvel, para citar alguns exemplos. De qualquer forma, apesar das falhas, o conjunto da obra é bastante agradável.
Para completar, a trilha sonora é outro de seus atrativos, incluindo além do citado cover do Nirvana, a versão original de American Pie, de Don McLean, que garante alguns momentos de leveza em meio ao caos que se desenrola ao redor de Natasha e sua família.
Lançado tardiamente, Viúva Negra não só cumpre o esperado, como supera expectativas e não desaponta os fãs. O filme ideal para inaugurar a Fase 4 do MCU nas telonas.
Andrizy Bento