“Não se pode capturar a vida de um homem em duas horas”.
A ideia parecia infalível. Uma revisita aos bastidores da criação do roteiro de um dos filmes mais prestigiados da história, constantemente no topo das listas de melhores longas de todos os tempos: o revolucionário Cidadão Kane, dirigido por Orson Welles. Sabemos que Hollywood adora se ver nas telas e isso é atraente e chamativo para a Academia. Quando se adota um verdadeiro clássico como ponto de partida, reproduzindo na tela todas as intrigas e polêmicas que envolveram sua produção, é inegável que irá despertar o interesse e a curiosidade.
Conduzindo essa história, simplesmente um dos mais talentosos cineastas em atividade: o meticuloso e audaz David Fincher. Para completar, o excelente e premiado Gary Oldman foi o ator escalado para protagonizá-la. Assim, temos a Era de Ouro de Hollywood retratada com todo o deslumbre e as polêmicas que caracterizam essa indústria, com direito a grandes intérpretes dando vida à figuras marcantes da época. Apesar de ambientada no final da década de 1930 e início dos anos 1940, o roteiro enfatiza a influência da mídia nos rumos políticos de um país como os Estados Unidos e o poder avassalador das fake news – tópicos, infelizmente, em constante evidência e discussão ainda na atualidade.
Soma-se a isso o fato de se tratar de uma história que, há muito, o pai do cineasta, Jack Fincher (falecido em 2003) desejava contar, tendo escrito o roteiro ainda na década de 1990 e nunca conseguido a oportunidade de filmá-lo. Portanto, era um projeto bastante pessoal e íntimo, no qual Fincher filho vinha trabalhando cuidadosamente ao longo dos anos. Realizado com um orçamento modesto, de cerca de trinta milhões de dólares, todo em preto e branco e com som mono, Mank finalmente garantiu seu espaço, sendo distribuído pela gigante do streaming, Netflix.
Com todos esses atributos, não havia como a produção falhar, certo? Bem…
Após um acidente de carro que deixa o outrora respeitado roteirista Herman J. Mankiewicz (Oldman) impossibilitado de andar, limitando sua locomoção, ele é levado a um rancho no meio do deserto por John Houseman (Sam Troughton), braço direito de Orson Welles (Tom Burke), ladeado pela datilógrafa, Rita Alexander (Lilly Collins) e pela enfermeira, Fraulein Freda (Monika Gossmann), que são expressamente orientadas a manter Herman longe da bebida a qualquer custo, a fim de concluir seu trabalho em 60 dias. O trabalho? O roteiro de Cidadão Kane, clássico incontestável dirigido e protagonizado por Orson Welles.
Na época bastante jovem, Welles já havia impactado o público com a produção radiofônica A Guerra dos Mundos (cuja transmissão fez milhares de cidadãos norte-americanos acreditarem que estavam diante de uma invasão alienígena) e se preparava para estrear na direção cinematográfica. O profissional recebeu sinal verde do estúdio RKO para realizar o longa que bem entendesse, tendo sua liberdade criativa garantida (liberdade que custaria caro a Welles no decorrer de sua carreira pós-Cidadão Kane, considerando sua recusa em se dobrar às vontades dos estúdios e em abrir mão de sua independência e autonomia na criação).
Se Welles era considerado um prodígio e um gênio com grande potencial, Herman, por outro lado, no auge dos seus quarenta anos, vinha em franco declínio ocasionado por seus vícios em álcool e jogos, além da língua afiada que o fez conquistar inúmeros desafetos. Mergulhado em uma espiral de autodestruição, parecia improvável que Herman fosse capaz de conseguir um novo trabalho naquela altura do campeonato. É quando Welles lhe dá essa oportunidade com a condição de que ele abdicasse dos créditos do roteiro, se retirasse para um sítio onde ficasse longe de festas e bebidas e cumprisse o prazo estabelecido.
Enquanto está preso à cama e recita o texto, fortemente inspirado por suas memórias pessoais, para que Rita o datilografe, flashbacks invadem a tela a fim de contextualizar os fatos e mostrar como se sucederam os acontecimentos que levaram o personagem-título até à posição decadente em que se encontra. Valendo-se de saltos temporais em profusão, Mank assume uma narrativa não linear à imagem e semelhança de Cidadão Kane. E as referências à obra a qual presta tributo e, ao mesmo tempo, disseca os bastidores, não param por aí.
O filme é baseado em um controverso e amplamente conhecido artigo, intitulado Criando Kane, de autoria de Pauline Kael, publicado originalmente no semanário New Yorker, em 1971. Aqui no Brasil, chegou a ser incluído um uma coletânea de ensaios da escritora, “Criando Kane e outros ensaios”, lançado pela Editora Record. No artigo, Kael alegava que Welles não teve participação nenhuma no texto de Cidadão Kane, sendo sua autoria apenas de Mankiewicz. Ao longo dos anos, diversos críticos e estudiosos da obra de Welles contestaram vorazmente a versão de Kael, afirmando que Welles teve, sim, peso na produção do roteiro.
Alvo de controvérsias na ocasião de seu lançamento, envolvendo as figuras reais nas quais Herman se inspirou para a composição do protagonista Charles Foster Kane e de sua segunda esposa, Susan Alexander (respectivamente, o magnata da imprensa sensacionalista William Randolph Hearst e sua amante, a atriz Marion Davies), o longa acabou prejudicado, ganhando apenas um Oscar, de Melhor Roteiro para Mankiewicz e Welles, embora tenha sido indicado a outras oito categorias na edição de 1942 da premiação. Dizem por aí que Hearst tentou impedir a estreia do longa, comprando os negativos da RKO para destruí-los, porém, não obteve sucesso. Mesmo diante de tantas polêmicas e impasses, a aclamação veio posteriormente, com Cidadão Kane encabeçando listas e mais listas de melhores filmes da história.
Mank está muito longe de figurar como um desastre cinematográfico em termos artísticos. Nem vou entrar no mérito de que compará-lo a Cidadão Kane (por mais que o filme de Fincher hábil e espertamente procure emular as escolhas estéticas e os recursos narrativos utilizados na obra de Orson Welles), é uma flagrante injustiça, dada a importância atribuída a Kane no decorrer das décadas. Porém, enquanto o longa que Mank referencia se valia de uma montagem irretocável e a proposta de uma narrativa não linear, além de inovadora para a época, fazia absurdo sentido, contribuindo para tornar aquele universo retratado por Welles ainda mais atraente e instigante ao espectador; Kirk Baxter, o montador do longa assinado por Fincher, só alcança a proeza de atenuar um pouco as constantes idas e vindas no texto de modo a deixar o produto final um pouco menos cansativo, enfadonho e arrastado do que poderia ser. Mérito exclusivo dele.
Outro problema está na indefinição do que um filme como Mank vem representar. Ora parece disposto a se concentrar na trajetória de Mankiewicz, ora em sua subtrama política. Ora parece funcionar como um tributo singular a Cidadão Kane, ora como uma crítica a Orson Welles, defendendo o contrário do que a história apregoa – que o roteiro não foi uma parceria entre os dois profissionais, mas que Mank se encarregou de todo o trabalho.
Curioso notar que, ainda que seja atribuída somente a Jack Fincher a autoria do roteiro de Mank, David Fincher já afirmou que o texto original passou por várias revisões pelas mãos de Eric Roth, cujo nome não figura nos créditos…
A própria fotografia de Erik Messerschmidt, tão elogiada por críticos ao redor do globo, representa mais uma das inconsistências e contradições da produção. Fincher procurou utilizar os mesmos atributos estéticos e de linguagem que fizeram de Cidadão Kane uma obra pioneira. Além de ser todo em preto e branco, o longa faz amplo uso do plongée e contra-plongée. O jogo de luz e sombras (bastante óbvio, convém dizer) e as diferentes perspectivas conferidas pela câmera de cima para baixo e de baixo para cima, enfatizam silhuetas e delimitam bem as figuras de poder que surgem em cena.
Porém, enquanto Kane foi filmado em película, com formato de tela padrão aspect ratio: 1.37:31, em Mank foram utilizadas câmeras digitais e formato widescreen. Ao tratar as imagens posteriormente para que se assemelhem ao longa de Welles, Fincher deixa nítido que suas escolhas estéticas tratam-se de puro preciosismo. Em nenhum momento, a fotografia convence com seu aspecto envelhecido, por mais granulada que tente parecer e por mais que marcas redondas sejam inseridas no canto da tela (que indicavam a troca de rolo das projeções). O contraste das cores também é pouco funcional. No mais, é visível em cada quadro de Mank que a produção foi filmada com câmeras digitais.
Para não dizer que a tal imersão buscada por Fincher a fim de fazer o espectador acreditar que está assistindo a um filme de época não é alcançada em nenhum momento, sejamos justos. Ele acerta pontualmente: com os créditos iniciais que não se limitam a trazer um toque nostálgico como reproduzem com exatidão o estilo dos filmes antigos; o excesso de fade-outs a que recorre; e o som gravado em um único canal, bem próprio dos filmes da época. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross também é um deleite. A partitura confere a densidade exata que as sequências exigem, trazendo grande impacto e antecipando momentos catárticos.
A trama opta por um teor maniqueísta ao retratar seus personagens de modo tão raso e bidimensional, lançando mão de estereótipos. Gary Oldman faz o que pode para injetar alguma simpatia em seu personagem-título, bastante arrogante, cínico e que além do problema com a bebida, trata-se de um marido e pai ausente. Como de costume, Oldman é intenso e suficientemente carismático para tornar seu personagem atraente, ainda que esta não seja nem de longe a melhor de suas atuações. Mas tem ao menos uma grande cena: um monólogo durante um jantar, completamente alcoolizado, que é o suficiente para justificar sua indicação a Melhor Ator no Oscar.
A personificação de Orson Welles por Burke é questionável e controversa. Ele surge na tela como uma figura sombria e até caricata. Igualmente artificiais são as retratações de Louis B. Mayer (Arliss Howard), o poderoso chefão da MGM, e William Hearst. Marion Davies, por outro lado, é a figura mais viva do longa, ganhando profundidade e contornos mais humanos e sensíveis na interpretação de Amanda Seyfried. Até mesmo o personagem fictício, Shelly Metcalf (Jamie McShane) que possui uma trama interessante, é pouco desenvolvido. Não acho que as falhas nas interpretações sejam culpa dos atores, contudo. Os problemas são oriundos do roteiro e da própria direção de Fincher.
De positivo, podemos citar o fato de que Fincher escapa do óbvio ao despir Hollywood do glamour (por mais fascinante e tentador que seja seguir esse caminho), trazendo à tona um lado obscuro seu – ao mostrar grandes estúdios de cinema sendo utilizados como palanques políticos, produzindo filmes que se restringem puramente a propagandas panfletárias e reacionárias. Assim, o cineasta traça um instigante panorama político-social dos Estados Unidos em plena era da Grande Depressão, que assolou o país ao longo da década de 1930, procurando focar em seu protagonista e no papel que ele desempenhou nessa conturbada história, o que é louvável. Entretanto, pouco se aprofunda em seus personagens e situações e não se preocupa em fornecer muito contexto. Portanto, é necessário já conhecer de antemão as intrigas que envolveram Cidadão Kane e ter ao menos alguma compreensão das figuras reais retratadas na tela antes de assistir Mank. Aliás, o próprio Fincher deixa isso evidente ao fazer seu personagem central proferir a linha que abre este texto.
O espectador desavisado pode assistir ao clássico de Welles hoje e não ver nada de mais. Isso porque, posteriormente ao seu lançamento, o cinema incorporou as inovações técnicas trazidas por Kane e passou a reproduzi-las à exaustão, tornando-as fundamentais e imperativas. Mank não traz nada de inovador. Envolve mais os já familiarizados com todas as histórias e lendas que cercaram o longa de Welles. Contudo, mesmo os fãs do filme podem se sentir decepcionados ao término da sessão. Pena, pois Kane merecia um tributo que lhe fizesse mais justiça. Mank é muito pouco para arrebatar o imaginário dos fãs de cinema, especialmente da Era de Ouro de Hollywood. Faltou, além de mais escopo, algo de mais provocativo, que era o que a obra de Welles tinha de sobra e o que os trabalhos pregressos de Fincher sempre proporcionaram ao espectador.
★★
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Mank”