Da rotina barulhenta dos palcos para um cotidiano de brutal silêncio. Ruben (Riz Ahmed) é baterista em um duo de heavy metal com a namorada, Lou (Olivia Cooke). Ambos moram juntos em um trailer, que é o veículo que os conduz a diferentes cidades dos Estados Unidos, a fim de cumprirem a agenda de shows de sua turnê. A banda não é famosa, portanto, seu público ainda é bastante restrito e alternativo. Em uma dessas ironias cruéis do destino, Ruben perde a audição abruptamente. É óbvio que isso produz um impacto negativo certeiro em sua carreira. Mas também impacta em outros aspectos de sua vida. É quando o músico parece, enfim, se dar conta da importância dos pequenos sons, ruídos e vibrações do cotidiano, do quão dolorosa é a ausência deles e, mais ainda, se ver repentinamente forçado a conviver com o peso esmagador do silêncio total.
Ao buscar auxílio médico, o rapaz descobre que perdeu cerca de 80% da audição e o quadro só tende a se agravar. A cirurgia para a inserção de implantes que podem lhe devolver a chance de ouvir é caríssima e nem Ruben e nem Lou têm dinheiro suficiente para arcar com os custos da operação. Teimoso e transtornado com o fato de perder trabalhos e ter de se afastar de sua paixão, a música, o baterista insiste que prossigam com seu itinerário de shows, mesmo diante dos conselhos da namorada e companheira de banda que tenta, a todo custo, dissuadi-lo da ideia.
Um rompante de raiva no trailer que divide com Lou constitui o momento determinante, quando enfim a garota toma uma decisão. Enquanto Ruben segue relutante para uma instituição cristã e sem fins lucrativos para surdos, a namorada vai viver e tentar acertar as contas com o pai, de quem é distante. Assim, Ruben se vê obrigado a se separar, por tempo indeterminado, de sua outra grande paixão. Em um intervalo de dias, o músico perde tudo o que importa para ele e tem de se conformar com um destino que jamais lhe havia passado pela cabeça.
No centro de apoio aos surdos, eles não encaram a ausência de audição como deficiência, problema ou obstáculo. A surdez é uma característica, parte de quem eles são. E essa é uma oportunidade para Ruben descobrir e explorar outros talentos desconhecidos, além de ter contato com pessoas que geralmente não teria fora dali. Dia após dia, o músico tem de aprender a conviver com a ausência do som, o que significa adotar um estilo de vida totalmente diferente do que levava, aprender a se comunicar de uma forma distinta e reaprender a interagir e se conectar aos demais. Mas Ruben leva um tempo para se adaptar. Não é de um momento para o outro que ele se conforma com sua atual situação. Ex-viciado em drogas e sem se envolver com substâncias ilícitas há quatro anos, Ruben ainda tem de lidar com a ansiedade, a frustração e a revolta consequente das circunstâncias em que se encontra.
Em seu longa de estreia, Darius Marder impressiona ao apresentar uma trama verossímil, com uma mensagem extremamente simples, mas cujos recursos narrativos e elementos estéticos a tornam inventiva. Desde o momento em que a repentina surdez desencadeia mudanças abruptas e profundas na vida de Ruben e Lou, passando por todo o seu processo de adaptação, até a forma como ele passa a encarar o mundo, a atmosfera é realista, tornando palpável todo o incômodo, a inquietude, a dor e, por fim, a compreensão de Ruben do universo ao seu redor, aliás, dos significados contundentes do som e do silêncio ao redor.
Versando sobre inclusão, autoaceitação e acessibilidade sem didatismos, Marder evita o caminho fácil e previsível da enfadonha e clichê jornada de superação. Ruben não se conforma e não aceita sua condição, até os derradeiros momentos do longa, o que o leva a recorrer à cirurgia e o torna uma persona non grata na instituição que o acolheu, pois, como dito alguns parágrafos atrás, os moradores do centro não veem a falta de audição como algo que deva ser consertado.
E o silêncio diz mais do que qualquer palavra. O design de som arrojado e primoroso garante uma experiência imersiva, de modo que o espectador compreenda as dificuldades e assimile toda a rotina de aprendizado de Ruben em seus períodos de adaptação – tanto ao completo silêncio, quanto ao áudio imperfeito conferido pelos implantes posteriormente.
Contando com uma cinematografia introspectiva, uma câmera discreta e cuidadosa ao registrar a intimidade e o cotidiano dos surdos, além de uma poderosa direção de atores, O Som do Silêncio se destaca como um dos filmes mais interessantes e reflexivos da temporada, além de surpreender por seu acuro técnico. Mas, talvez, o grande acerto de Marder tenha sido mesmo a escalação de seu protagonista. Riz Ahmed defende seu personagem de maneira soberba, transformando o baterista Ruben em uma figura tridimensional, e garantindo uma performance inspiradora, merecidamente indicada ao prêmio de Melhor Ator no Oscar deste ano.
Há um dito popular que afirma que só damos o devido valor àquilo que perdemos. No caso de O Som do Silêncio, o longa não só reitera essa colocação, como nos mostra que ao perder o que nos é valioso, podemos nos lamentar ou dar a nós mesmos a chance de nos reinventarmos a partir desta perda. E é quando Ruben percebe que o silêncio pode ser tão precioso quanto o som ao redor, garantindo um dos frames finais mais belos a que já tive o prazer de conferir. Somente a cena de encerramento do longa já torna merecido todo o alarde em torno da produção nessa temporada de prêmios.
★★★★
Andrizy Bento
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