Nos planos iniciais de Meu Pai, acompanhamos Anne (Olivia Colman) caminhando apressada pelas ruas, adentrando um edifício e subindo as escadas correndo, embalada por uma música catártica. Ao entrar no apartamento do pai (Anthony Hopkins) e chamar diversas vezes por ele, enfim o encontra, sentado em uma poltrona. A música passa de som não diegético para diegético, escapando pelos fones de ouvido de Anthony (sim, personagem e ator partilham do mesmo nome). E esse é só um dos exemplos de brilhantes transições com os quais nos deparamos ao longo do filme. O recurso é simbólico, pois ilustra perfeitamente a proposta do longa assinado por Florian Zeller – que chega hoje, 8 de abril, às plataformas digitais – uma vez que nós, espectadores, nos vemos por diversas vezes tão confusos quanto Anthony ao tentar compreender o que faz parte ou não de sua realidade.
Nessas primeiras cenas, Anthony, um homem de 81 anos, ainda soa ao espectador bastante lúcido, embora aparente estar um pouco frustrado com a filha e com a enfermeira particular (apenas citada), a quem acusa injustamente de ter roubado um de seus objetos de valor afetivo: um relógio de pulso. O pai de Anne se recusa a ter uma cuidadora por acreditar que é perfeitamente capaz de cuidar de si mesmo. Critica a decisão da filha de querer se mudar para Paris com o novo namorado – afinal, lá eles nem falam inglês (algo que repete constantemente) -, afirma que ela o está abandonando e a responsabiliza por sua solidão. É visível no semblante de Anne toda a angústia, a dor e a culpa que sente com relação ao pai e como ela digladia consigo mesma entre se anular por ele ou seguir seu próprio rumo, distante dali.
Mas não. O longa não segue uma estrutura convencional e vai muito além do drama entre o pai que precisa de cuidados e a filha que abdica da própria vida em ordem de dispensar a ele a atenção necessária. Assim que Anthony observa, da janela de seu apartamento, a filha cruzar a rua, as coisas passam a ficar cada vez mais estranhas e complicadas.
O longa é um retrato magistral e contundente da demência, concentrando-se na luta de Anthony que tenta, desesperadamente, fazer com que sua realidade tenha algum sentido, como se trafegasse por uma atmosfera constante de delírio e pesadelo.
Meu Pai é adaptado de uma peça do próprio Zeller, Le Père, cujo roteiro foi escrito a quatro mãos, em parceira com Christopher Hampton (o mesmo de Ligações Perigosas). O realizador francês fez uma aposta segura ao escolher um texto de sua autoria, e com o qual já tinha intimidade por ter trabalhado com ele nos palcos, para estrear na direção cinematográfica. Segura, mas não desprovida de ousadia. Ainda que seu début como cineasta incorpore elementos da peça teatral (o longa se passa quase totalmente em um mesmo cenário, com bastante ênfase nos diálogos, no gestual e expressão de seus poucos atores), assim como Uma Noite em Miami, Zeller é feliz na transição de um formato para outro, evitando que seu filme passe a desconcertante impressão de teatro filmado. Muito pelo contrário. O diretor se apropria dos recursos narrativos e visuais que somente a sétima arte tem a oferecer, construindo uma obra impactante e devastadora, diante da qual é impossível ficar indiferente.
Zeller nos tira de nossa zona de conforto a partir do momento em que decide contar sua história da perspectiva do octogenário Anthony, apresentando a evolução gradual de sua demência. Sem sutileza, o diretor nos arremessa para dentro da memória do protagonista, corroída pouco a pouco pela progressiva doença que o acomete. Vivemos a experiência de Anthony e, junto com ele, passamos a questionar a estrutura de sua realidade.
Passado, presente e futuro se confundem na tela, retratando brilhantemente o caos que está se formando na mente de Anthony. As lembranças nuviosas se sobrepõem umas às outras. O personagem sente imensa dificuldade para se lembrar e se ater a eventos recentes, troca nomes, confunde rostos, não reconhece as pessoas que vão surgindo repentinamente em seu apartamento e que desaparecem sem prévio aviso. Em suma, ele avança o filme duvidando da realidade ao seu redor.
O êxito artístico do longa é mérito da perspicaz direção de fotografia, do acurado design de produção e da notável montagem. A câmera está sempre atenta aos detalhes. São as alterações sutis no espaço, como as gradativas mudanças na decoração, que nos fazem perceber a evolução do estágio da doença de Anthony e identificar a passagem do tempo – embora ela nunca seja bem demarcada. Apesar de focar na intimidade do personagem central dentro de seu apartamento, a câmera está longe de ser voyeurista ou de funcionar como mera testemunha da confusão mental que ele atravessa. É realmente perturbador como as lentes registram as transformações no ambiente, nos fazendo sentir como se estivéssemos profundamente imersos dentro da cabeça confusa e das memórias duvidosas do protagonista.
Excelente ao explorar a relação entre o personagem e o lugar em que vive, Zeller torna o espaço um verdadeiro labirinto. As portas do apartamento parecem referências pontuais pelas quais ele é capaz de se situar. Porém, os corredores do flat levam Anthony constantemente a se perder, e ele precisa atravessá-los, sempre dando de cara com pessoas das quais não se lembra, o deixando completamente desnorteado. Chega a causar certo incômodo e desconforto ao espectador, especialmente porque a direção de fotografia abusa de planos fechados, close-ups e constrói uma atmosfera inquietante e até mesmo claustrofóbica.
Além disso, o longa é audaciosamente bem montado, apostando na repetição de cenas, transmitindo a sensação de que Anthony está preso em um looping infinito. A edição sagaz de Yorgos Lamprinos confere um ritmo acertado ao filme, fazendo com que a trama jamais perca o fôlego ou soe arrastada e . A fluidez narrativa impressiona e todos os elementos – sejam personagens ou meros objetos – postos ou tirados de cena fazem absurdo sentido no desfecho da história.
É interessante notar como, por exemplo, Anthony passa dos trajes casuais do início do filme para o uso constante do pijama, não conseguindo se lembrar nem de executar tarefas simples, como trocar de roupa, sem o auxílio de alguém. A sua relação com o relógio, mostra o quão obsessivo ele está em saber as horas com exatidão, como se temesse estar perdendo seu tempo.
Não tem como não exaltar a assombrosa e comovente atuação de Hopkins e a destreza e facilidade com que ele passeia pelas diversas nuanças que compõem seu personagem. Começa o longa teimoso, rebelde e até um pouco sisudo, para então apresentar um ar brincalhão e inconveniente diante de uma de suas cuidadoras e da própria filha e termina frágil e vulnerável, devastando o emocional do espectador e nos provocando um poderoso sentimento de empatia. Hopkins é um monstro do cinema que ostenta todo o seu talento na construção de um personagem no auge dos seus oitenta e três anos.
Como pontuei acima, a cinematografia (a cargo de Ben Smithard), a edição e a mise-en-scène são dignas de nota e sua consonância faz o filme não apenas funcionar, como surpreender. Especialmente em se tratando de um longa de estreia. Mas é inegável como bastaria um erro de casting para fazer o longa de Zeller naufragar. Então, a responsabilidade pela excelência de Meu Pai também repousa sobre os ombros de Hopkins. O ator carrega o filme nas costas e está muito bem coadjuvado por uma das melhores atrizes em atividade no momento. Olivia Colman, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz em 2019, por A Favorita, sabe muito bem mexer com as emoções do espectador com suas expressões pungentes e entonação certeira.
Os dois são as figuras mais constantes em cena, contando com outras participações brilhantes ao longo do filme, como é o caso de Rufus Sewell, Imogen Poots e Olivia Williams. E o apartamento de Anthony se converte em um quase personagem na narrativa. É esse o espaço que lhe traz segurança e representa seu lugar de conforto, onde ele ouve seus CDs de ópera no fone de ouvido e que abriga a cozinha onde pode fazer seu chá da maneira que bem entende. As mudanças ao redor, como as pinturas da filha mais jovem que somem do ambiente, vão lhe trazendo cada vez mais desespero, causado pelo não reconhecimento, em determinado ponto, de sua própria residência. Esse apego aos bens materiais que possuímos e os lugares em que vivemos e moldamos de acordo com nossa personalidade, a fim de que fiquemos confortáveis com nós mesmos, constituem tudo aquilo que nos fazem ser quem e o que somos. É parte de nossa identidade. E nada mais triste e assustador do que perdê-la.
Concorrendo em seis categorias no Oscar deste ano, inclusive a de Melhor Filme e as principais de atuação (devido às performances brilhantes de Anthony Hopkins e Olivia Colman), Meu Pai se encontra, a partir de hoje, disponível para compra e aluguel nas plataformas de vídeo NOW, iTunes, Google Play, Sky Play e Vivo Play.
★★★★
Andrizy Bento
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