Meu maior receio com relação à Aves de Rapina era que o longa privilegiasse o conceito em detrimento da narrativa. Que estivesse alinhado às pautas feministas, introduzisse um punhado de personagens femininas idealistas e empoderadas, com frases de efeito lacradoras egressas de redes sociais, mas que em termos de enredo, apresentasse muito pouco. Outro problema vinha do fato de o longa ser um spin-off do inócuo Esquadrão Suicida. Mais um porém – embora se trate de uma opinião pessoal: a caracterização de Margot Robbie como Arlequina jamais me agradou. Nenhum problema com a atriz que é bastante competente (vide Eu, Tonya, filme que lhe garantiu uma indicação ao Oscar em 2018 e não foi à toa).
Mesmo com tantos poréns, e talvez devido às minhas parcas expectativas, Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa, dirigido pela realizadora sino-americana Cathy Yan, se mostrou não apenas uma grata surpresa, mas um dos melhores entretenimentos de 2020. Está certo que, como eu disse no post sobre os favoritos do ano passado, não houve muitas estreias e as poucas que vi, não me cativaram tanto quanto eu gostaria. De qualquer modo, dentre os lançamentos que pude conferir no ano que passou, esse é um dos mais divertidos, dinâmicos e, quem diria, despretensiosos.
Decidida a superar o término com Coringa, com quem vivia um relacionamento abusivo, Arlequina muda seu visual e explode a fábrica Ace Chemicals, como um gesto simbólico – uma vez que foi lá que iniciou seu caso com o palhaço cruel e homicida. Obviamente, isso desperta a atenção de figurões do crime que não ousavam se meter com a garota antes por ela contar com a proteção do namorado psicopata e, agora, mostram-se mais do que dispostos a se aproveitar de sua repentina vulnerabilidade. Enquanto a protagonista escapa das constantes perseguições, Cassandra Cain (Ella Jay Basco), uma jovem batedora de carteiras com problemas familiares e conhecida de Arlequina, rouba um diamante que contém os números das contas bancárias de uma famosa família de criminosos chacinada anos atrás e se torna alvo de Roman Sionis (Ewan McGregor), o Máscara Negra, um mafioso de Gotham que deseja obter o tal diamante a qualquer custo.
Partindo de uma série de circunstâncias bizarras, reviravoltas, coincidências e improbabilidades, o caminho de Arlequina cruza com o da sombria Helena Bertinelli (Mary Elizabeth Winstead), a Caçadora, que busca vingança pelo assassinato de sua família testemunhado por ela na infância; a vigilante e meta-humana Dinah Lance (Jurnee Smollett-Bell), a Canário Negro, que se aventura cantando na boate gerida por Sionis e posteriormente, como sua motorista; e a debochada detetive Renee Montoya (Rosie Perez), que apresenta problemas decorrentes do vício em álcool, passa a ser desacreditada no Departamento de Polícia de Gotham City e, por fim, é afastada da investigação que conduzia acerca de Sionis. Arlequina se vê forçada a se unir a elas e formar um improvável grupo de heroínas (ou anti-heroínas), em ordem de salvar a pele de Cassandra e derrotar o Máscara Negra.
É Arlequina quem brilha, sendo apenas coadjuvada pelas demais. Elas tem um tempo de tela muito menor e é reservado pouco espaço para desenvolvimento de suas personagens. O fato de serem um tanto superficiais e até mesmo caricaturais funciona dentro do contexto do filme, que segue a cartilha de Deadpool, contando com a cômica narração da tresloucada Arlequina, uma overdose de referências espertinhas, flashbacks, idas e vindas na narrativa e o tom de autossátira constante. O filme zomba tanto da produção que lhe deu origem (Esquadrão Suicida), quanto do DCEU como um todo, especialmente da atmosfera estabelecida por Zack Snyder. Fugindo do clima sombrio Snyderiano, a estética de Aves de Rapina aposta no espalhafatoso a fim de espelhar a personalidade de sua cativante protagonista. A paleta cromática é fiel ao seu espírito anárquico, muitas vezes flertando com a psicodelia.
Embora, como citado, os personagens não tenham tanta espessura, todo o elenco está bem, garantindo carisma às figuras que portam. O casting de Ewan McGregor, por exemplo, é um achado. O ator aparece em momento inspirado, interpretando o grande antagonista com uma afetação deliciosa. A verdade é que todos os atores parecem estar se divertindo e extremamente confortáveis interpretando suas personagens e é isso que o torna tão funcional.
O longa já começa bem com uma introdução em formato de animação que remete à origem da vilã/anti-heroína. Segue fazendo referências aos criadores da personagem (Paul Dini e Bruce Timm), a Bruce Wayne e até mesmo à clássica história A Piada Mortal. Saindo um pouco da mitologia da DC, o longa ainda traz um clipe que emula de maneira espirituosa Os Homens Preferem as Loiras, longa estrelado pela emblemática Marilyn Monroe, em 1953.
É fato que nem toda tentativa de humor funciona, nem todas as cenas de luta são bem planejadas ou convincentes, mas as derrapadas praticamente empalidecem ao se avaliar o conjunto, pois se trata de entretenimento puro.
Como é Arlequina quem narra a história – muitas vezes se perdendo, esquecendo de contar algum entrecho importante e tendo de voltar no tempo, fazer adendos e observações – a vibe adotada pelo longa que introduz as Aves de Rapina ao universo da DC no cinema é não apenas compreensível como adequada e muito bem-vinda. Contudo, um filme estrelado apenas pelo grupo terá de encontrar outro tom com urgência – isto é, se de fato a ideia de um longa centrado essencialmente na equipe se concretizar, considerando a bilheteria abaixo do esperado deste aqui.
Uma pena, pois seria uma ótima oportunidade de os realizadores adaptarem os arcos da aclamada Era Simone, quando a roteirista Gail Simone ficou a frente do título e revitalizou as Aves de Rapina, encabeçadas pela ex-Batgirl, Barbara Gordon, que assumia a alcunha de Oraculo, e tinha Canário Negro e Caçadora como agentes de campo. Um quadrinho excelente que destacava a força e inteligência de personagens femininas muito bem construídas, aliando a ação aos dramas pessoais das heroínas, com especial enfoque nos laços de amizade formados por elas. Se havia alguma coisa em que a revista pecava, era na arte… Mas isso é assunto para outra ocasião.
O fato é que, diante da decepção que atende pelo nome de Mulher-Maravilha 1984, pelo menos Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa foi um sopro de alívio em termos de longas baseados em quadrinhos da DC em 2020.
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa”