Mangá-Documentário: Virgem Depois dos 30

Embora eu seja uma curiosa e entusiasta da cultura japonesa e consuma obras vindas da terra do sol nascente – como mangás, animes, filmes e mais recentemente livros – tenho zero propriedade para falar de aspectos de sua cultura, tem muita coisa que ainda não consegui assimilar. Portanto, não sei como os japoneses abordam a questão dos gatilhos emocionais e como estes funcionam; e nem qual é a verdadeira dimensão do impacto que a falta de contato íntimo tem na população do país. Portanto, tive de confiar na palavra do autor enquanto lia.

Falo dos gatilhos, pois Virgem Depois dos 30 traz um alto teor de violência, tanto gráfica quanto narrativa, tanto física quanto psicológica. Trata-se de uma obra intensa, agressiva, hardcore, destituída de leveza e sutileza.

O mangá abre com a seguinte epígrafe: “Em alguns, a castidade é uma virtude; mas, em outros, é quase um vício”. O trecho extraído da obra globalmente conhecida Assim Falou Zaratustra de Friedrich Nietzsche, deixa evidente que a intenção do autor não é demonizar a virgindade propriamente dita, mas como os indivíduos retratados no mangá reagem a ela e por causa dela.

Em um momento particularmente delicado de sua vida, o autor Atsuhiko Nakamura havia perdido seu emprego como escritor, pois a revista para a qual trabalhava foi cancelada devido à crise no mercado editorial japonês. Sem alternativas, foi parar no setor de cuidadoria de idosos, atuando como administrador de uma instituição do ramo. Como se trata de um setor complicado em que ninguém quer realmente trabalhar – com alta incidência de desrespeito às normas trabalhistas – este acabou se convertendo em um reduto de desempregados, cidadãos que vivem à margem da sociedade e que constantemente emprega virgens de meia-idade. Como nenhuma outra empresa ou departamento os quer em seu quadro de funcionários, devido aos problemas que esses cidadãos causam e, como já foi dito anteriormente, o setor de cuidadoria de idosos sofre para encontrar alguém que realmente queira trabalhar nessa área, essa é mão de obra a que lhes resta recorrer.

Nesse ambiente inóspito, Nakamura identificou alguns padrões de comportamento não apenas preocupantes, como tóxicos e asquerosos em alguns dos funcionários que integravam sua equipe. Os sujeitos problemáticos eram solteiros, na faixa dos 30 a 60 anos e mostravam total inaptidão social. Não sabiam se portar, eram agressivos, grosseiros, abusivos e amorais. Com colegas de trabalho e com os pacientes – idosos indefesos e vulneráveis. A partir daí, Nakamura deu início a um amplo e profundo estudo acerca desses indivíduos. O resultado de toda essa pesquisa culminou no livro Documentário: Virgens de Meia-Idade que, posteriormente, contando com o traço afiado de Bargain Sakuraichi, ganhou uma versão no formato mangá-documentário intitulado Virgem Depois dos 30

Segundo Nakamura, estima-se que, hoje, no Japão, existam mais de dois milhões de virgens acima dos trinta anos de idade. Isto é, um a cada quatro japoneses ainda não se relacionou sexualmente com outras pessoas. E essa questão “individual” da virgindade tardia acarreta em um problema maior, um problema social e grave. Enquanto no Brasil, a sexualidade precoce é preocupante devido a inúmeros fatores – altos índices de gravidez na adolescência, abandono afetivo, riscos de contração de DSTs, e que, por sua vez, têm sua parcela de contribuição de impacto negativo em diferentes setores da sociedade (economia, educação e saúde pública) – no Japão, o problema é um pouco diferente.

Lá, os casamentos arranjados ainda eram comuns até à década de 1980. A prole gerada por esses casais de conveniência, é aquela que está atuando no mercado de trabalho hoje. Mas e amanhã? No Japão, decrescem os índices de matrimônio ano a ano e há um constante declínio na taxa de natalidade. Obviamente, esse quadro trará problemas no desenvolvimento econômico do país em um futuro muito breve. As pessoas irão começar a se aposentar e não haverá mão de obra para substituí-las. O Japão corre o severo risco de se tornar um país cuja população é composta majoritariamente por idosos. O cerne da questão: os virgens de meia-idade.

No ocidente, se popularizou nos últimos anos o termo incel, utilizado para definir os celibatários involuntários, membros de uma subcultura virtual, que se organizam e encontram em fóruns na internet, trocando experiências e expressando sua amargura resultante da incapacidade de encontrar parceiras românticas ou sexuais – quase sempre atribuindo a culpa de sua inabilidade de se relacionar afetiva ou sexualmente às mulheres, pintadas comumente como vilãs pelos incels. O comportamento tóxico, abusivo, misógino e radical acabou caracterizando esse grupo, pois alguns dos mais extremistas foram parar nas manchetes de jornais como responsáveis por agressões, feminicídio, massacres em escolas, cyberbullying e outros tipos de crimes violentos.

E, embora não mencione o termo propriamente dito, são esses indivíduos retratados na obra de Nakamura.

A virgindade não é a causa dos problemas desses sujeitos, tampouco pode ser culpabilizada pelos seus distúrbios. E o autor deixa isso bem evidente ao longo da narrativa. A virgindade, no caso, é uma das inúmeras consequências dos comportamentos antissociais, intolerantes, agressivos e doentios dos homens de meia-idade descritos no mangá-documentário. Essas condutas no dia a dia que acabam por agravar seus transtornos, dificultando ou impossibilitando a comunicação, o diálogo e as relações.

A palavra virgem, aparentemente, não se refere apenas à falta de sexo. O mangá aborda homens diferentes, com comportamentos, interesses e condições financeiras diversas, cuja unidade em comum é a virgindade. São homens que escolheram ser virgens porque acham que esse é um atributo precioso e que os torna raros, puros e distintos; e outros que tentaram, mas só conseguiram perder a virgindade na imaginação por temerem se aproximar de mulheres na vida real, ou cujas tentativas de aproximação foram desastrosas. Mas também são ilustrados na obra homens não virgens. Então, a palavra surge como um meio de classificar sujeitos com zero habilidade e total inaptidão para se relacionar socialmente. Eles são virgens de experiências sociais comuns. Por isso, o título do mangá não escapa de soar um pouco tendencioso, embora, deva admitir que também soe intrigante a ponto de despertar curiosidade e interesse no leitor. De qualquer maneira, o próprio autor afirma, ao final da obra, que os argumentos utilizados ainda são bastante crus, de modo que as pesquisas realizadas nesse campo ainda carecem de maior profundidade e de uma análise mais meticulosa.

Virgem Depois dos 30 também funciona como uma excelente denúncia do que acontece nos bastidores do setor de cuidadoria de idosos. Nakamura chega a expressar suas suspeitas de que funcionários problemáticos, pouco dedicados ou com comportamentos abusivos são contratados pelo setor para “resolver o problema previdenciário”, pois toda a negligência, a falta de atenção e de solidariedade por parte desses funcionários ajuda a diminuir a sobrevida média dos pacientes idosos. Nakamura é corajoso ao dar esse depoimento, pois, devido a ausência de mais provas, não passa de uma teoria do autor. Mas uma teoria que faz muito sentido.

Quanto à arte, é necessário ter estômago forte para digeri-la. O comportamento tóxico e abusivo dos sujeitos é ilustrado sem concessões. Há fortes cenas de bullying, automutilação, suicídio, degradação e rebaixamento moral. Há muito realismo no traço, em diversas passagens, mas Sakuraichi também abusa de um tom caricatural na composição gráfica dos personagens e que, por sua vez, acaba se mostrando um recurso acertado, pois corrobora o discurso e as atitudes dos tipos retratados no mangá. Sakuraichi é preciso na criação de uma atmosfera perturbadora. Não à toa, Nakamura apenas teceu elogios ao trabalho do ilustrador, uma vez que ele contou com poucas referências visuais e, mesmo assim, realizou um trabalho notável – segundo o autor, as características físicas dos sujeitos da vida real e das exibidas por suas contrapartes no mangá ficaram bem próximas.

Controverso, o Mangá-Documentário: Virgem Depois dos 30, roteirizado por Atsuhiko Nakamura, com ilustrações de Bargain Sakuraichi vale a leitura e a reflexão. A obra é bastante envolvente e o leitor não sossega enquanto não devora inteiramente o mangá. Lançado pela editora do ano, a Pipoca & Nanquim, a edição impressa da obra conta com capa cartão com impressão metalizada e sobrecapa, miolo em papel lux cream 80 g/m² e 244 páginas. Também encontra-se disponível na versão digital para e-readers.

Andrizy Bento

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