Egresso da talentosa trupe de humoristas, Monty Python – sexteto britânico famoso por esquetes televisivos e longas-metragens nonsense como A Vida de Brian e Monty Python em Busca do Cálice Sagrado – Terry Gilliam mostrou seu talento para além das gags absurdas e surreais ao dirigir filmes que nada tinham a ver com o grupo do qual era membro fundador. Lógico que Gilliam manteve em seus trabalhos posteriores elementos que caracterizaram o legado de Monty Python, como a verve cômica – a comédia afiada e pontual, sempre com um timing preciso. Mas provou ser também um cineasta inventivo e ousado ao se aventurar pelos amplos horizontes da ficção científica.
Gilliam não apenas dirigiu como roteirizou o alegórico e vanguardista Brazil – O Filme. Reza a lenda que durante a fase de produção, um dos nomes que o cineasta cogitava batizar seu longa era 1984 ½, em referência à obra visionária de George Orwell, 1984, cuja adaptação cinematográfica estreou um ano antes de Brazil invadir as telas, e serviu de inspiração para a composição do enredo do longa de Gilliam. No entanto, embora se percebam os paralelos entre as premissas das obras, elas divergem em inúmeros aspectos, cada uma ocupando seu merecido lugar de destaque no panteão das distopias e da ficção especulativa. Digamos que 1984 serve como um norte ou um ponto de partida para Brazil. Ambas as obras apresentam futuros distópicos, sociedades regidas por governos totalitários e um personagem comum que inicia o conflito ao se apaixonar, sendo esse o ato de rebeldia que conduz sua jornada e o leva a ser alvo de perseguição e tortura.
Lançado em 1985, o filme é uma fantasia distópica com ares de cinema noir e uma estética steampunk que retrata um futuro sombrio, mas pontuado por cores vibrantes aqui e acolá, indumentárias espalhafatosas e maquiagens carregadas que remetem inevitavelmente a uma das expressões artísticas mais autênticas e genuinamente brasileiras, o Carnaval.
Brazil apresenta uma sociedade que vive sob um regime ditatorial, no qual os cidadãos são condicionados, obedientes e servis a um sistema opressor, tirânico e burocrático. Aliás, considerando a paixão por papelada, carimbos e preenchimentos de formulários para tudo, até mesmo para morrer, o filme não poderia ter outro nome que não fosse Brazil. E devido a essa excessiva burocracia dos órgãos do governo, a culpa nunca é de ninguém. Um chefão se exime da responsabilidade, buscando uma desculpa qualquer para não assinar um papel que atribui a ele a execução malsucedida de uma determinada tarefa, provando sua total falta de competência; assim sobra para um mais fraco, um funcionário de um cargo mais baixo, colocar seu nome em um papel sem ao menos ter conhecimento do que está fazendo.
Sam Lowry (Jonathan Pryce), protagonista da história, trabalha em uma repartição pública e graças aos contatos de sua mãe no governo, está prestes a receber uma promoção. Ele vive sua rotina, dividindo-se entre o emprego e o apartamento cubicular em que mora, sem questionar a estrutura a qual está submetido ou se preocupar com o que acontece ao seu redor – enquanto a elite alienada celebra suas vidas absurdamente fúteis, alheia à realidade, atos terroristas são comuns em lugares frequentados pela alta sociedade; bombas são detonadas em lojas chiques e restaurantes cinco estrelas, mas nada disso provoca distúrbios na paz dos figurões e das socialites que continuam fazendo suas compras e saboreando suas caríssimas refeições sem se alarmar, sabendo que compete às autoridades a função de perseguir e torturar os rebeldes.
A vida e a mentalidade de Sam mudam drasticamente quando ele encontra uma mulher misteriosa, Jill Layton (Kim Greist), que busca respostas acerca de uma falha desastrosa do governo, fruto de uma operação amadorística das autoridades. Quando o filme tem início, agentes armados aparecem invadindo um apartamento, atirando sem responsabilidade, danificando a propriedade e, de maneira arbitrária, capturando o homem errado – um pacato pai de família cujo nome é muito parecido com o de um rebelde caçado pelo governo. Sem se importar com o fato de que a esposa e os filhos do homem assistem àquela cena de violência completamente tomados pelo choque, os agentes conduzem o cidadão coercitivamente para que seja punido com todo o rigor da lei, isto é, torturado.
O mais curioso é que Jill povoa os sonhos de Sam mesmo antes de ele conhecê-la. Atormentado por pesadelos, o então comedido protagonista aceita a promoção no trabalho, apesar de sua relutância inicial, a fim de ter acessos a fichas confidenciais, descobrir quem é Jill Layton e por que ela vem sendo caçada tão enérgica e implacavelmente pelo governo.
Soando como uma comédia atípica, por vezes aterradora, Brazil ilustra um sistema que atira primeiro e nem pergunta depois. Que pune àqueles que procuram questionar ou driblar as regras, a rigidez e o controle; que vê a autonomia como indício de subversão e rebeldia, categorizando os que ousam desobedecer ou não se submeter a uma hierarquia atroz como terroristas, corruptores da ordem e perturbadores da paz e do bem estar geral.
Despindo-se de quaisquer sutilezas e lançando mão de metáforas e alegorias brilhantes, Terry Gilliam compôs uma sátira contundente, ácida e cruel da burocracia, passividade e obediência cega do funcionalismo público; uma crítica afiada do regime militar que assombrava o país entre as décadas de 1960 e 1980 – embora o cineasta não confirme e nem negue o fato, é difícil não perceber o longa como uma recriação da vergonhosa e sombria época em que o Brasil foi assolado pela Ditatura Militar; e ainda funciona como um alerta precoce dos perigos do avanço incontrolável, desmedido e irresponsável da tecnologia e das intervenções cirúrgicas com fins estéticos.
O longa também versa sobre nepotismo, consumismo e capitalismo selvagem. Temas tão atuais ainda hoje, que impediram o filme de envelhecer e soar datado.
É particularmente interessante como Gilliam representa visualmente as repartições públicas como labirintos cinzentos compostos de salas claustrofóbicas. E o país que surge na tela, como já mencionado anteriormente, só poderia se tratar de Brasil, não só devido ao seu caráter burocrático, como ao mostrar realidades sociais tão distintas – ricaços se aventuram em um mundo artificial regado a festas e cirurgias plásticas e crianças sonham em um possuir um cartão de crédito, mas permanecem completamente alheios e despreocupados com o que acontece às suas voltas, vendo o governo caçar àqueles que buscam maior independência e lutam contra a repressão, prejudicial a todos. Enquanto isso, Aquarela do Brasil de Ary Barroso é executada à exaustão. A melodia tranquilizante e as estrofes poéticas corroborando a alienação geral.
O longa se encontra disponível na Amazon Prime Video.
Andrizy Bento
O Filme não está mais na Amazon mas tenho no meu computador.Vi ontém e foi a primeira vez que vi todo.Senti pena do Sam e da Jill.
Opa! Obrigada pela informação, Gabriel. Quando da publicação do texto, ele estava disponível no catálogo do Prime Video. Eu vou dar uma pesquisada se ele está no Telecine ou em algum outro streaming. Esse filme é incrível! Obrigada pelo comentário.
O Jack Lint,o torturador cínico,me faz lembrar do Ustra.