O Diabo de Cada Dia

Explorando a perigosa relação entre o fanatismo religioso e a violência, O Diabo de Cada Dia traz uma premissa interessante e um elenco afinado, porém, a produção sucumbe ao fatalismo e ao excesso de conveniências narrativas. A princípio o filme surge como uma denúncia. Por trás de moralismo, dos bons costumes, das vidas regradas pautadas pela obediência e devoção religiosa, encontram-se escondidos não apenas falhas humanas triviais, mas a hipocrisia e o terror mascarados de boas intenções. Justificam-se crimes violentos e hediondos com o velho discurso da fé, do “chamado divino”, da salvação e expurgo da alma. Os personagens utilizam a religião e a suposta fé como escudos para se eximir da consequente penitência dos pecados. 

Talvez seja simplista analisar o fanatismo religioso por um viés maniqueísta, porém, não é difícil enxergar as duas pontas bem delimitadas de um cordão que, de um lado, traz os poderosos que se fartam e se aproveitam da fé alheia, lesionando crendices populares. Do outro, uma população inculta e ingênua, majoritariamente carente, cuja crença está acima de todas as coisas e a falta de instrução e orientação, os leva a acreditar nas palavras proferidas por seres de carne e osso – mas que como são providos de uma oratória persuasiva, fazem com que centenas de milhares acreditem que se tratam de mensageiros divinos enviados dos céus para lhes guiar, uma vez que não há outros caminhos. São esses os dois pólos opostos e complementares que integram a galeria de personagens de O Diabo de Cada Dia. Na figura do personagem de Tom Holland, no entanto, cabe o questionamento e o confronto tanto com a opressão dos líderes, quanto com a passividade do rebanho.

O longa abre com a narração de Donald Ray Pollock, autor do livro que inspirou o roteiro do filme, The Devil All the Time que, no Brasil, foi publicado em 2011, com o título O Mal Nosso de Cada Dia. O romance marcou a estreia do operário e caminhoneiro Pollock na literatura e, apesar de se tratar de uma ficção, a ambientação de seu livro guarda ecos de memórias da infância do autor. A convite do diretor, Antonio Campos, Pollock assume a função de narrador, apresentando no mapa os dois vilarejos nos quais é ambientada sua história: Knockemstiff, situada em Ohio, e Coal Creek, no estado vizinho, Virginia. Duas pequenas comunidades rurais em que se desenrolam as tramas de duas gerações durante as décadas de 1950 e 1960, compreendendo o período pós-Segunda Guerra Mundial e pré-Guerra do Vietnã. 

A trama é centrada na jornada de Arvin Russell (Holland) em busca de um encerramento, de um acerto com os fantasmas do passado, a fim de enterrar definitivamente o diabo de cada dia que o atormentou e assombrou a vida inteira. Arvin é o filho órfão de Willard Russell (Bill Skarsgård), um veterano traumatizado pelos horrores da guerra e Charlotte (Haley Bennett), que morre precocemente devido a um câncer. O luto e a culpa que carrega pela morte da esposa, levam Willard ao limite do desespero que culmina em sua morte. Ainda criança, Arvin é levado para Coal Creek para ser criado por sua avó, Emma (Kristin Griffith), ao lado da irmã adotiva, Lenora (Eliza Scanlen), filha de um pastor emocionalmente perturbado, Roy Laferty (Harry Melling), que assassina a própria mulher, Helen Hatton (Mia Wasikowska ), em busca de ressurreição. No passado, a avó de Arvin fez uma promessa de casar seu filho Willard com Hellen. Porém, ainda que a promessa não tenha se cumprido e ambos tenham subido ao altar com outras pessoas, seus caminhos se cruzam através dos filhos e aproxima muito além de geograficamente os dois vilarejos, interconectando a trama principal às subtramas, trazendo à tona uma saga trágica de personagens sombrios e perturbados, que ainda envolve um casal de serial killers – Sandy (Riley Keough) e Carl Henderson (Jason Clarke) – e deixando rastros de corpos chacinados por onde passam; e um pastor farsante e pedófilo, Reverendo Preston Teagardin (Robert Pattinson).

O roteiro assinado pelo próprio cineasta, Antonio, em parceria com seu irmão Paulo Campos, entrelaça de maneira interessante os arcos dos personagens, explorando muito bem as conexões intrínsecas entre eles posteriormente. Mas não é muito sutil ou orgânico ao fazê-lo. Trata-se de ficção, portanto, é algo passível de concessões. Porém, por se amparar excessivamente em conveniências narrativas, a trama soa por vezes rocambolesca. Outro de seus deméritos é a visão fatalista que acaba por ser opressora na vida de seu personagem central, como se não houvesse meios de ele fugir da natureza e o do temperamento violentos herdados de seu pai. Arvin procura ser um bom homem, mas toda a maldade e crueldade que o rodeiam, o levam inevitavelmente a puxar o gatilho inúmeras vezes. A morte é retratada ora como sacrifício, ora como punição pelos pecados e como livramento da dor. Também há uma apatia e uma frieza conjuntas que permeiam o longa, impedindo o espectador de se importar de fato com os personagens, em sua maioria rasos e bidimensionais, cujas personalidades são definidas e demarcadas pelos pecados e crimes que cometem ou de que são vítimas, nada mais. 

Infelizmente, faltou maior profundidade, o que não desmerece inteiramente a produção, que continua sendo uma experiência interessante para o espectador, especialmente ao trazer à tona, de maneira corajosa, os paralelos entre o fanatismo religioso e a violência e ao personificar a hipocrisia e depravação dos detentores da moral e bons costumes por meio de seus personagens. Destaco também a performance do elenco. A força da atuação de Holland (sombrio e convicente) é impressionante. Pattinson aparece em momento inspirado, abusando do sotaque caricato e compondo um tipo repulsivo. Eliza Scanlen convence com sua ingenuidade e melancolia e Sebastian Stan é cirúrgico na composição do ambicioso e sórdido xerife Lee Bodecker. 

Campos filma de maneira impactante sequências incômodas de revirar o estômago envolvendo violência doméstica, psicopatia, assassinatos brutais e pedofilia. Abusa de close-ups para destacar as emoções genuínas e a crueldade no semblante de seus personagens (valorizando ainda mais a atuação de cada um deles), flerta com o gore, e garante ao seu longa um tom bem cru e visceral, compondo uma atmosfera inquietante de suspense praticamente sem pausas para respiro. Também acerta na reconstituição da época, ambientação e caracterização dos personagens. É um bom filme que peca na forma como é conduzido, devido à mão pesada de Campos e ao investir tão brutalmente na série de coincidências que resultam em toda a miséria e tragédia na vida de Arvin.

Andrizy Bento

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