The Outsiders – Vidas Sem Rumo

“Permaneça dourado, Ponyboy”

A escritora S.E. Hinton ainda era, ela mesma, uma adolescente quando traduziu para o papel as angústias, os desafios e os prazeres dessa fase tão atribulada da vida. Partindo da realidade que ela observava ao seu redor, a estudante de ensino médio sequer poderia imaginar o quão transformadora seria a sua narrativa naquela e nas décadas seguintes. É atribuído a Hinton o papel de responsável pela invenção de um mercado literário adolescente, o que conhecemos hoje como YA Lit. The Outsiders – Vidas Sem Rumo foi publicado pela primeira vez em 1967 preenchendo uma lacuna que existia na literatura: a de livros dedicados ao público jovem. 

Os altamente subestimados jovens, vistos desde sempre, como aquela parcela inócua e alienada da população. E certamente, um dos motivos pelos quais Outsiders foi alçado ao status de clássico, é o fato de Hinton imprimir profundidade em seu trabalho. Em uma narrativa extremamente sensível e de alto teor emocional, a autora humaniza personagens bem reais que, nas páginas de noticiários, ganham o injusto título de delinquentes juvenis, mas são apenas adolescentes desajustados, que não acreditam possuir, de fato, um lugar no mundo, sofrendo diariamente as consequências da desigualdade social; frutos de uma sociedade corrompida, compreensivelmente revoltados e procurando sobreviver e se adaptar a um cotidiano de violência. 

Outro mérito do trabalho está em seu talento para retratar personagens masculinos. Existe um debate muito grande dentre os estudiosos e apreciadores de literatura sobre a forma como homens costumam retratar mulheres em seus escritos, resultando em arquétipos por vezes deficientes e problemáticos. Outsiders, por sua vez, é a epítome do bromance e a antítese da masculinidade tóxica, pintando personagens masculinos que valorizam a amizade, não tem pudores em permitir aflorar suas emoções, declarando em alto e bom tom sua sensibilidade e o carinho que sentem um pelos outros. Isso, em meio a violentas brigas de gangues e às posturas de rebeldes e durões que sustentam ao andarem por aí munidos de canivetes, exibindo orgulhosamente cicatrizes de brigas e bebendo e fumando de modo desenfreado para manterem e reafirmarem a fama de perigosos.

Para completar, estamos falando de um livro escrito por uma adolescente sobre uma dura realidade adolescente e voltado majoritariamente ao público adolescente. Hinton deu voz a jovens marginalizados pela sociedade de maneira realista e bastante humana, sobretudo por ter conhecimento de causa. A escritora se concentrou tanto nesse microverso juvenil, mergulhando nas emoções de seus personagens adolescentes, que praticamente eliminou adultos da história. Pais são brevemente citados e há um professor que desempenha um papel minúsculo de coadjuvante. O foco é mesmo nos Greasers e nos Socs

A obra narra a rivalidade entre dois grupos distintos de adolescentes. Na cidade de Tulsa, em Oklahoma, os Greasers e os Socs disputam a liderança pelo território. Por mais brilhantes que alguns deles sejam, os Greasers vivem aparentemente conformados com a sua realidade, sem perspectivas de um futuro grandioso. São representantes da classe baixa, trabalhadora e marginalizada da cidade, se envolvendo constantemente em brigas e confusões, trajando suas típicas jaquetas de couro, abusando de brilhantina no cabelo e curtindo rock’n’roll. O termo greaser é encarado de maneira pejorativa pelos socs, abreviação de socials, que são, como descreve o protagonista e narrador Ponyboy, os playboys, os filhinhos de papai do lado oeste da cidade, acostumados a pilotar carros velozes caríssimos e terem tudo o que querem a hora que desejam.  

Ponyboy é o caçula de três irmãos greasers que perderam os pais muito cedo e se viram obrigados a se virar da melhor maneira possível para permanecerem juntos, sob o risco de serem separados pelo estado e enviados para algum orfanato. Darry, o mais velho deles, mesmo sendo um aluno exemplar, bom atleta e interessado em cursar uma faculdade, precisou abrir mão de seus sonhos e largar o colégio a fim de arrumar um trabalho para sustentar seus irmãos mais novos. Sodapop, o carismático irmão do meio, também deixou a escola sob o pretexto de que nunca conseguiu entender nada e de que não tinha mesmo um futuro acadêmico, por isso foi trabalhar em uma oficina. No jovem sonhador e mais novo dos três, Ponyboy, é em quem repousa a chance de um futuro diferente. Fã de livros e filmes, Pony curte desenhar e escrever, tem uma carinho especial por Soda e dificuldades de comunicação e convivência com o irmão mais velho, Darry, por este ser muito rígido e sério. Outros personagens que integram a gangue dos Greasers são o assustado Johnny Cade, o alucinado Dallas “Dally” Winston, além de Keith “Two-Bit” Mathews e Steve Randle. É nesse cenário de conflitos de gangues, que Ponyboy vai amadurecer da maneira mais trágica e difícil possível. Após uma inocente ida ao cinema, as vidas do garoto e do amigo, Johnny Cade, vítima de constante violência doméstica, viram de cabeça para baixo, quando os dois se envolvem em um assassinato de um soc. Obrigados a fugir, eles procuram a ajuda do barra pesada Dally Winston, encontram abrigo em uma igreja fora da cidade, mudam o visual sob o risco de serem reconhecidos através de retratos falados publicados no jornal e se tornam heróis ao salvarem crianças de um incêndio na igreja.

Mas não é aqui que a narrativa encontra seu final feliz. As consequências do incêndio constituem apenas uma das diversas tragédias com as quais os greasers têm de lidar. Após sofrer com a perda dos pais, Pony também tem de encarar a morte de dois amigos próximos e a angústia diante da possibilidade de ser separado de seus irmãos.

The Outsiders é um livro sobre família que, curiosamente, exclui os pais da equação. É sobre a família que escolhemos: os amigos. Um grupo de jovens deslocados que vêem uns aos outros como irmãos, suprindo as carências e ausências de uma família biológica, por assim dizer. A obra, narrada pelo ponto de vista de Ponyboy, assumindo reviravoltas dramáticas tocantes, nos apresenta garotos rebeldes que choram juntos, se defendem, possuem uma parceria admirável, uma fidelidade inabalável e até mesmo uma co-dependência emocional. 

Hinton escolheu bem seu protagonista. Ponyboy é um personagem complexo que, ao mesmo tempo que gosta de discutir poesia, não foge de uma briga. Se orgulha de sua natureza greaser, mas também lamenta sua falta de sorte. Sabe que o caminho de alguém com sua posição econômica é complicado, mas é um estudante dedicado e cheio de sonhos. Mantém a pose de durão, mas é extremamente sensível. Ele não se escusa de manifestar sua admiração por Soda e o amor fraterno pelo melhor amigo Johnny. E mesmo quando a desesperança toma conta de si, Pony mostra que, em meio a tantas dificuldades e obstáculos existentes na estrada de um greaser, ainda há motivos para se acreditar, para continuar dourado.

Acredito que razões que fundamentem e justifiquem o fato de obras se converterem em clássicos atemporais e que atravessam décadas, são inúmeras. Ao mesmo tempo que não existem explicações plausíveis. Há títulos que simplesmente tocam milhares de pessoas por motivos distintos. Portanto, é algo de caráter subjetivo. Mas é inegável como todos esses fatores expostos aqui foram de fundamental influência para transformar The Outsiders no clássico celebrado de hoje. Por essas e outras que este é um livro indispensável e que deve ser lido por jovens de todas idades. Esta que vos escreve, já o leu duas vezes.

O filme baseado na obra, dirigido por Francis Ford Coppola, lançado em 1983, é assunto de um post futuro. Fiquem de olho 😉

A Intrínseca lançou há pouco uma edição belíssima em capa dura, com um projeto gráfico de encher os olhos, com destaque para o vermelho que remete à intensidade e ao caráter denso da obra. Além do texto integral, fácil de ler em uma sentada – pois vale-se de uma linguagem fluida e acessível – a publicação ainda traz um prefácio assinado por Ana Maria Bahiana, falando sobre a transposição do livro para as telas, a cargo de Coppola, uma nota da autora, fotos e curiosidades dos bastidores do filme, com depoimentos de alguns dos membros do elenco – hoje considerado estelar, mas que, na época, eram apenas jovens rostos prestes a alcançar o estrelato – além de uma entrevista com Susan Eloise Hinton. 

Andrizy Bento

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