“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Qualquer um reconhece o genial início de A Metamorfose de Franz Kafka, seja o verdadeiro bookworm ou mesmo o leitor casual. Ainda que não tenha lido a obra, já ouviu falar desta que é uma das mais célebres aberturas de livro da literatura e conhece de imediato sua procedência. E ainda que você não se encaixe em nenhum dos dois grupos citados, não curta e nem consuma livros, e ainda assim teve um clique ao ler o começo da desafortunada aventura de Gregor Samsa neste texto, deve ser porque certamente se deparou com o trecho em uma prova do vestibular ou Enem.
Ian McEwan, o badalado autor de Reparação, dá início à narrativa de A Barata prestando uma evidente homenagem ao clássico de Kafka. No entanto, a situação se inverte. Neste, é a barata que, certa manhã, acorda em uma cama transmutada em uma criatura monstruosa: um homem. Mas não se trata de um homem qualquer e, sim, do Primeiro Ministro do Reino Unido. Com a metamorfose, vem uma carga ininterrupta e inesgotável de responsabilidades e decisões a serem tomadas. Como a barata não tem nada a perder em um corpo que não lhe pertence, mas que será devolvido ao dono em breve, metamorfoseado em Jim Sams, a criatura dá início à execução de um tão engenhoso quanto absurdo plano, o Reversalismo. Isto é, além de inverter a lógica da clássica obra de Kafka, a ideia é inverter também o fluxo do dinheiro. Desse modo, as pessoas pagam para trabalhar e ganham dinheiro para consumir.
Medida econômica recebida não apenas com compreensível descrédito, mas com indignação por alguns membros de seu próprio partido, pelo ministro do Exterior, pela Chanceler Alemã e alguns setores da sociedade, mas que cresce gradualmente no conceito de Archie Tupper, Presidente dos Estados Unidos, e ganha o apoio fervoroso da classe trabalhadora e idosos. Em discursos inflamados, Jim Sams enfatiza que a proposta visa um futuro próspero para o país. A ordem é combater o staus quo. O protagonista lança mão de seu recém-adquirido carisma (desde que o inseto começou a habitar seu corpo) e de um sem-número de estratégias corruptas, antiéticas e dissimuladas para fazer passar sua doutrina. Inclusive, sem se importar em derrubar vorazmente os antagônicos à sua ideologia durante o processo, os chamados “continuístas”.
Embora, o ponto de partida remeta à Metamorfose de Kafka, o próprio autor admite que sua principal influência na criação e estruturação de seu conto longo de 103 páginas, é o texto satírico do panfletário Jonathan Swift e o resultado é uma metáfora bem sacada do Brexit. Nas palavras do próprio autor, o livro “foi concebido naquele ponto em que o desespero se encontra com o riso. Mas as pessoas se perguntam se o processo do Brexit extrapolou a sátira”.
Para os que não estão familiarizados e encontram-se sempre desatentos às notícias e desconectados da realidade (adeptos da filosofia de que a ignorância é uma bênção), Brexit trata-se de um acrônimo para British exit, isto é, saída britânica em bom português e refere-se à decisão do Reino Unido de retirar-se da União Europeia (união econômica e política formada anteriormente por 28 países independentes, em sua maioria, europeus, fundada em novembro de 1993 e cujo objetivo é a prática do livre comércio entre os componentes do grupo e a facilidade de suas respectivas populações transitarem entre esses países, podendo residir e trabalhar em qualquer parte do território do UE). Em julho de 2016, foi realizado um plebiscito no qual os britânicos poderiam votar pela permanência ou pela saída da União Europeia. 52% dos eleitores votaram pela retirada do país do bloco. Inicialmente agendado para 29 de março de 2019, o processo foi adiado e, finalmente, concretizado em 31 de janeiro de 2020, o que torna A Barata de McEwan uma obra extremamente atual.
A escolha por representar a política por meio de um inseto considerado repugnante e desprezível por tantos não é aleatória. Além da aparência abjeta, de se infiltrar no meio da sujeira, de sua presença ser um indicativo de parca higiene e acúmulo de lixo, vem bem a calhar como representação do britânico Boris Johnson, Primeiro-ministro do Reino Unido e líder do Partido Conservador.
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Em uma sátira política bem engendrada, Ian McEwan debate com agilidade e sagacidade surpreendentes as artimanhas e jogos sujos no meio político, o poder e a influência da imprensa sensacionalista e mais tradicional, e o caráter incisivo e acusatório das mídias digitais. Embora desnecessário e redundante, o posfácio elucida muitas de suas metáforas, mas esse aspecto em nada prejudica a obra. O escritor expressa preocupação se obteve êxito ou não com sua invenção de Reversalismo. Particularmente, estou certa de que sim. A narrativa é funcional e ainda conta com o charme de ser revestida de fina ironia. Pode não se converter em um clássico atemporal como A Metamorfose de Kafka ou ter a importância histórica do texto de Swift, que pautaram o enredo de A Barata. Mas, ainda assim, é um necessário e certeiro reflexo destes dias. E não à toa, o autor cita o Brasil em dois momentos em seu posfácio 😉
Para se ler em uma sentada.
“Se a razão não prevalece, talvez só nos reste o riso.”
Andrizy Bento
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