Alerta de gatilho: Minha Sombria Vanessa é um livro que fala sobre abuso sexual na infância e adolescência. Se você se sente desconfortável com o tema, a leitura do livro, bem como da crítica a seguir, pode não ser recomendada.
Este texto contém alguns spoilers… Leia por sua conta e risco.
Primeiro romance de Kate Elizabeth Russell, elogiado por Gillian Flynn (autora de Garota Exemplar e Objetos Cortantes) e pelo mestre do terror moderno, Stephen King, a verdade é que Minha Sombria Vanessa sequer precisava da validação de especialistas ou de grandes nomes da literatura, pois, uma vez que você toma o livro em mãos, é impossível parar de ler. Desde as primeiras linhas, o leitor se vê fisgado, ainda que não seja um livro de fácil digestão. Um dos títulos mais alardeados e controversos do ano narra a história de uma jovem abusada por um professor durante toda a adolescência e início da fase adulta. Mas que não consegue enxergar a si mesma como vítima, mesmo tantos anos após o ocorrido.
Intercalando presente e passado, a história, contada em primeira pessoa, pela perspectiva da protagonista Vanessa, apresenta os eventos de dois períodos distintos da vida da garota. O intervalo entre as duas épocas nem é, assim, tão grande. Mas, de qualquer forma, parece haver um abismo entre a adolescência e a fase adulta da personagem central, ainda que Vanessa pareça ter estacionado no tempo.
Em 2000, Vanessa é uma estudante solitária e um tanto misantropa do ensino médio, com grande apreço e talento pela escrita e que inicia um relacionamento complicado com seu professor de literatura quase 30 anos mais velho, Jacob Strane. Em 2017, Vanessa é uma funcionária de um hotel, sem perspectivas de um futuro diferente e que ainda parece não querer e nem conseguir se desvencilhar das amarras do passado. É o início da terceira onda do feminismo, em que explodem denúncias de assédio e agressão sexual na indústria do cinema. E, encorajadas por figuras públicas e proeminentes da mídia, que resolveram se abrir, relatar os abusos sofridos e acusar figurões de Hollywood, centenas de mulheres ‘anônimas’ ao redor do globo aderem ao movimento #metoo e decidem expor suas histórias em redes sociais, denunciando chefes, professores, familiares e colegas de trabalho assediadores.
A protagonista que dá nome ao livro se vê em uma encruzilhada que a desafia emocional e psicologicamente a partir do momento em que se depara com uma publicação no facebook de uma aluna do antigo colégio em que estudava, denunciando o professor Strane por agressão sexual. Torna-se uma obsessão para Vanessa verificar o post de hora em hora, vendo aumentar o número de curtidas, compartilhamentos e comentários solidários de outras garotas, expressando admiração pela autora do post. Vanessa procura refazer, em sua mente, toda a sua jornada emocional percorrida desde os tempos do colégio e que praticamente se resume ao seu envolvimento com Strane.
Toda a sua vida parece ter sido pautada por ele e girar em torno dele.
“Deve chegar um momento em que consegue permissão para ser definida por outra coisa que não o que ele fez com você”.
Vanessa nunca viu seu relacionamento com o professor sob a ótica do abuso, uma vez que ele tinha seu consentimento e a garota jamais negou a atração física e emocional que sentia por Strane. No entanto, como Russell, de maneira inteligente, resolveu adotar a narração em primeira pessoa, é possível perceber que, apesar de estar confusa, inconscientemente a personagem sabia que estava sendo violada, até mesmo pela forma como descreve as reações de seu corpo quando ele a tocava. Ela narra seu incômodo com a primeira relação sexual dos dois; diante das fotos que ele costumava tirar dela estirada sobre a cama; sua inércia durante o sexo com ele ao longo dos anos em que seu envolvimento perdurou entre idas e vindas e até mesmo momentos em que ela parece escapar do próprio corpo durante o contato físico… Percebe também que Strane teve um papel decisivo em sua vida ao impactar seus relacionamentos posteriores. Vanessa costuma agir de maneira sempre submissa, servil e obediente, sem contestar ou questionar, sem impor suas vontades aos homens com quem se envolve – quase todos tão repelentes quanto Strane. A personagem parece abrir mão ou mesmo não sentir vontades ou desejos. Ela procura satisfazer o outro em detrimento de si mesma. O professor contamina tanto a sua visão de mundo, que Vanessa vê em todos homens o rosto e o comportamento de Strane. E procura ver todas as garotas da idade que ela tinha quando o conheceu, com os olhos dele. É doentio e perturbador.
A personagem questiona se houve mesmo abuso, devido ao fato de sempre se mostrar aberta às investidas do professor, desde seu primeiro toque que ela até julgou acidental em um primeiro momento. Havia sua anuência para que o professor fizesse o que queria com ela. Ela queria seu beijo e topa ir até a casa dele em uma noite. Tem ciúmes ao pensar nele com outras mulheres. Sentia-se até mesmo lisonjeada e encantada com os elogios e toda a atenção que o professor lhe dispensava. Ao mesmo tempo, sente um pouco de repugnância de certas atitudes do professor e, quando mais velha, julga até desprezíveis e abjetas algumas lembranças nebulosas de seus tempos de adolescência.
É trágico como a recordação que sempre surge em sua mente quando tenta pensar em si mesma aos quinze anos, é a de estar se envolvendo sexualmente com o professor, o assistindo sentir prazer, enquanto ela permanece quase apática esperando que ele se satisfaça. Suas reminiscências se resumem a isso. Igualmente lamentável, é o seu temor de envelhecer e não ser mais atraente para Strane, uma vez que ela se dá conta de que o professor só sente desejo mesmo por adolescentes. Existe também uma sutil diferença entre a sua própria experiência e a de outras garotas que denunciam Strane por abuso: com as outras meninas, ele se limitou a passar a mão nelas, o que prontamente as incomodou, fez com que se afastassem e o denunciassem. Vanessa acredita que se permitiu ir mais longe, que admitiu que Strane avançasse o sinal, jamais repelindo seu toque.
E daí a sua confusão que é totalmente compreensível. A sua história é tão repleta de nuanças que é natural que, ao repassá-la mentalmente – já com passagens tão apagadas e distorcidas pelo tempo –, ela se veja completamente desorientada frente às acusações contra o professor.
Quanto a ele, Taylor Birch, a autora do post no facebook que o acusa de assédio, é a que melhor o define ao longo do livro: Strane se autodeprecia para que os outros sintam pena e o eximam de toda a culpa. Assim, ele joga toda a responsabilidade sobre o colo e as costas das garotas em quem tocou e, principalmente, de Vanessa. Injusto, egoísta e manipulador, durante todo o tempo, o professor insiste que sua vida está nas mãos dela; que Vanessa seria capaz de destruí-lo com apenas um telefonema, dando à garota uma falsa impressão de ocupar a posição de poder em seu relacionamento ao invés de ser a vítima. Mas é ela quem termina por se anular de maneira constante por ele. A protagonista perde tudo. Todas as suas oportunidades de construir um futuro brilhante por causa de Strane. Ele não perde nada. O professor insiste em dizer que Vanessa jamais será prejudicada, pois, uma vez que seu caso venha indesejavelmente a público, a adolescente poderia reconstruir sua vida. Ele não. Sua reputação e carreira estariam definitivamente destruídas e enterradas. É o que ele alega.

Partindo de uma linguagem simples, direta e objetiva, sem floreios, Russell é incisiva ao utilizar alusões constantes à Lolita de Nabokov (que se torna o livro favorito da protagonista), e ao fazer referências à Fiona Apple, a cantora predileta de Vanessa, vítima de um estupro na adolescência. Ao mesmo tempo é sutil ao mencionar brevemente o casamento do renomado autor Edgar Allan Poe que, com 27 anos, desposou a prima de apenas 13, em uma época que tal atitude era percebida como natural pela sociedade e o conceito de infância não era visto ou debatido como hoje. A autora faz questão de ressaltar a posição de poder que o homem vem ocupando ao longo da história. O abuso e o assédio foram tão normalizados durante tanto tempo pela sociedade patriarcal, que Vanessa acaba sendo vítima duas vezes: dos abusos e manipulação do professor e da própria sociedade que a leva à eterna dúvida se o comportamento de Strane para com ela foi inadequado ou não.
“Entendo o que ela quer dizer: não fomos impotentes por escolha, foi o mundo que nos forçou a ser. Quem teria acreditado em nós, quem teria se importado?”
Um dos títulos mais contundentes e importantes do ano, Minha Sombria Vanessa é um livro difícil, mas – apesar de se tratar de ficção – é dolorosamente real, importante e deve ser lido.
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Minha Sombria Vanessa – Kate Elizabeth Russell”