Neste momento alarmante de pandemia, em que o número de casos de infecções provocadas pelo coronavírus aumenta exponencialmente a cada dia, a cada hora, temos de fazer nossa parte e sermos conscientes, de forma a evitar que o vírus se alastre ainda mais. Lembrem-se: tudo o que fizermos agora, como forma de prevenção, parecerá a muitos algo exagerado e excessivo. Tudo o que fizermos depois, como forma de reparo, será pouco e insuficiente.
Para quem tem a oportunidade de trabalhar home office, fique em casa e cuide dos seus – especialmente daquelas pessoas da família que pertencem aos grupos de risco, tais quais idosos, diabéticos, hipertensos e pessoas com problemas respiratórios. A recomendação é sair de casa apenas quando for explicitamente necessário, como ir à farmácia ou ao supermercado. Para aqueles como nós, da staff do site, que ainda precisamos nos deslocar até o trabalho, resta redobrar os cuidados e a atenção, não ser negligente com relação à higiene, lavar bem as mãos, cobrir a boca e o nariz ao espirrar ou tossir, se alimentar direito, manter distância social de pelo menos dois metros dos coleguinhas, não compartilhar objetos pessoais, evitar aglomerações, espaços fechados e manter os ambientes bem ventilados.
Ah, e lembrem-se de não estocar álcool em gel e nem alimentos em casa. Não há necessidade.
A cultura pop, por meio de livros, filmes e séries de ficção, já vem nos alertando sobre as possibilidades e os riscos de um apocalipse há séculos. Para quem está em casa, de quarentena, uma ótima alternativa é ler livros, HQs ou assistir filmes e séries distópicas…
Sério, Andrizy? Você acha mesmo que é o momento ideal para isso?
Bem, podemos aprender muito com os personagens que simbolizam a resistência e a sobrevivência em cenários caóticos e apocalípticos. Posso garantir que os personagens da brilhante Y: O Último Homem me ensinaram muitas coisas.
Em 2002, o hoje aclamado Brian K. Vaughan lançou, pelo selo Vertigo, a série Y: The Last Man (no Brasil, Y: O Último Homem, tradução ao pé da letra). Ilustrada por Pia Guerra, a série narra as consequências de um evento catastrófico de proporções globais: de súbito, todos os seres do planeta portadores do cromossomo Y morrem simultânea e espontaneamente. Os únicos sobreviventes do chamado gênerocídio são Yorick Brown e seu macaquinho de estimação, Ampersand. Tão misteriosa quanto a morte de todos os homens da Terra é a sobrevivência dos dois personagens. Em sua jornada em busca de desvendar o enigma e descobrir o objetivo por trás da calamidade que poupou sua vida e a de Ampersand, Yorick atravessa maus bocados e enfrenta até mesmo ameaças, sequestros e atentados em um mundo agora habitado somente por mulheres.
É curioso notar como, na cultura pop, as obras que retratam futuros pós-apocalípticos, se empenham em evidenciar que a maior ameaça à humanidade é, de fato, o próprio ser humano, como se fosse sua própria antítese, seu próprio nêmesis. Por exemplo, enfrentar os zumbis de The Walking Dead é um passeio no parque em comparação a combater os humanos vivos que, ao longo das zilhões de temporadas, surgiram no caminho da trupe errante de Rick Grimes, conseguindo dar muita dor de cabeça ao grupo. Não adianta, é sempre naqueles que detém o poder e o domínio que reside o perigo. É como salienta o Professor Xavier no prólogo de X-Men 2: compartilhar nunca foi o atributo mais nobre da humanidade. De fato. Os dominantes sempre vão impor suas verdades, suas convicções e suas regras para aqueles que se encontram em uma posição de subordinação.
Aqui abro um adendo para dizer que, não sei vocês, mas, nessas últimas semanas, cada vez que vejo o relato de algum conhecido nas redes sociais, dizendo que foi ao supermercado e havia pessoas enchendo carrinhos a fim de estocar alimentos em casa, sem pensar que essa atitude pode prejudicar outros que vão ficar sem, eu só consigo pensar que é o próprio ser humano que vai matar todos nós. Não o vírus.
Y: O Último Homem é, sobretudo, perspicaz e convincente na representação de um mundo no qual todos os homens foram dizimados por uma praga. Mas enganam-se aqueles que pensam que este seria um mundo lindo, colorido e maravilhoso sendo habitado somente por mulheres. Ah, se a misoginia fosse o único dos males que precisamos combater diariamente…
Mas as divergências ideológicas e os conflitos entre nações perduram, constituindo um problema remanescente do mundo antes deste ser afetado pela praga. Ainda existem grupos radicais, que pregam o extremismo e a supremacia, e uma personagem em particular que se empenha em tentar manter vivo o conceito de guerra em um mundo em que os outrora principais articuladores desses conflitos foram erradicados. Ela carrega consigo suas próprias motivações e convicções, uma filosofia deturpada e que utiliza para justificar o porquê de a guerra ainda ser imperativa. E são esses personagens que perseguem, com afico, Yorick, o último homem vivo. Em suma, a ignorância não é um atributo inerente apenas aos portadores do cromossomo y…
Há aquelas que estão atrás de Yorick para fins de reprodução, de modo a prevenir e evitar o fim da espécie humana. E outras que querem eliminá-lo sumariamente, libertando a Terra da última representação de ameaça a um planeta teoricamente perfeito.
Carismático, mas nem sempre muito inteligente, Yorick precisa da ajuda da Agent 355 e da Doutora Allison Mann para se manter vivo. Vaughan jamais o pinta como herói ou salvador da humanidade. Embora seu ego esteja nas alturas por acreditar que há algo de especial em si que o fez ser poupado da dizimação, ele mal perde por esperar a verdadeira explicação por trás de sua misteriosa sobrevivência.
Tocando em temas pertinentes, de ordem política e social, Y: O Último Homem ainda é inteligente ao abordar a questão dos transgêneros e na excelente representação de uma personagem bissexual. A agente 355 é muito bem trabalhada nesse sentido, algo raro de se ver na cultura pop em geral. E aqui eu abro outro adendo para expressar uma frustração: não consigo entender qual é a dificuldade que roteiristas encontram em lidar com o tema da bissexualidade em suas obras…
Vaughan ainda é cuidadoso ao mostrar como alguns setores da sociedade ficam desabastecidos após a extinção dos homens. Não porque as mulheres são incompetentes ou incapazes de exercer determinadas funções. Mas é justamente para evidenciar o machismo no mercado de trabalho que, desde sempre, apregoa que algumas profissões são exclusivamente masculinas. Assim, as mulheres precisam aprender na raça o que o machismo estrutural sempre lhes negou.
Ao longo de sessenta edições, a trama consegue cativar o leitor, deixá-lo ansioso e na expectativa pelo próximo ao findar a leitura de cada volume. Se há um demérito e alguma embromação na história, essa atende pelo arco da companhia de teatro que insiste em se arrastar – o mais enfadonho e desnecessário, mesmo que contando com algumas sacadas inteligentes. Contudo, o autor se redime no momento em que a malfadada companhia se torna uma editora de quadrinhos e cria uma história que eu adoraria ver como spin-off pelas mãos do próprio Vaughan, centrada na Última Mulher.
O final, melancólico, fica bem próximo de um tom realista, mostrando a sociedade procurando se reestruturar após varrer os portadores do cromossomo Y do planeta. Acima de tudo, Y: O Último Homem nos faz refletir sobre o peso de nossas escolhas e sobre a assustadora, mas palatável possibilidade de a humanidade estar à beira da extinção.
No Brasil, a série foi relançada pela Panini Comics em dez volumes, reunindo as sessenta edições em encadernados semelhantes aos formatos americanos. Antes, contudo, a série começou a ser publicada por estas bandas pela Opera Graphica, que se encarregou do lançamento dos dois primeiros encadernados. Posteriormente, a Pixel Media adquiriu os direitos de publicação. A partir do segundo semestre de 2009, no entanto, a Panini se tornou a responsável exclusiva pela publicação de todos os títulos da linha Vertigo no Brasil, encarregando-se do relançamento do primeiro encadernado e, na sequência, dos outros nove volumes da série. A editora ainda republicou a obra de Vaughan em capa dura no ano de 2015, totalizando cinco volumes.
Vale a pena ler nessa época sombria de COVID-19.
Andrizy Bento