A saga do irlandês Frank Sheeran (Robert De Niro) – veterano da Segunda Guerra e assassino profissional – e sua ligação com o misterioso desaparecimento do líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino) durante a década de 1970, é contada nessa grandiloquente produção de mais de três horas de duração, assinada por Martin Scorsese. O diretor reúne dois monstros sagrados do cinema, De Niro e Al Pacino*, em um território que lhes é familiar e sedimentou suas carreiras no passado. O universo da máfia também não é uma novidade para Scorsese, bem como o ambiente ítalo-americano tão bem explorado em obras como Os Bons Companheiros e Cassino. Baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, a obra é eficiente ao mergulhar e dissecar os meandros do mundo da máfia. O Irlandês se concentra nos vínculos estabelecidos entre os sindicatos e o crime organizado e na construção – espantosa, convém dizer – de seus personagens principais.
Ao mesmo tempo em que Scorsese revisita, parece despedir-se melancolicamente do gênero que o consagrou, desenvolvendo um profundo estudo deste. O Irlandês pode ser definido como uma drama de teor saudosista, que versa sobre a ascensão de um motorista de caminhão à gângster temido e perigoso. Essa trajetória é narrada pelo próprio Sheeran, já decadente, idoso e isolado em um asilo. Mas ele não se propõe a contar os fatos com precisão e objetividade. A narração é carregada de um tom reflexivo, de sentimento de culpa e arrependimento, de tristeza pelas escolhas feitas e decisões tomadas. As cicatrizes que mais o perturbam não são as ocasionadas por uma vida repleta de violência e mortes, resultantes de seu envolvimento com a máfia. Mas do fato de preterir e negligenciar sua família em prol da carreira como criminoso. Em um determinado momento, sua nostalgia vem acompanhada de antigas e amareladas fotografias. Ao invés de clichê, a cena é tocante por conferir humanidade ao retratado. Outro mérito da narrativa é fugir com sabedoria dos caminhos fáceis trilhados por outras cinebiografias, evitando o didatismo tão comumente observado em obras do gênero.
Em sua nona colaboração com o diretor de Taxi Driver (título emblemático tanto da carreira do cineasta quanto do ator em questão), De Niro mostra seu arrebatador talento ao interpretar mesmo nos momentos em que se rende a silêncios contemplativos – tão intensos quanto qualquer cena de tiroteio. O ator consegue expressar a melancolia com precisão e mostrar como aqueles dias tão ferozes quanto gloriosos tendem a se encerrar com um fim brutal pelo disparo de uma arma, ou com um fim amargo ocasionado pela implacabilidade do tempo e da solidão. Mesmo o mais arrogante e soberbo dos seres não é capaz de desafiar o tempo ou a morte, de lutar contra a iminente velhice, os fantasmas do passado, as sombras da memória e do esquecimento e o fim de seus dias. Não é apenas na figura defendida por De Niro que esse aspecto do longa se faz evidente. Também é possível notar que a intenção de O Irlandês é narrar o fim dos dias de glória da máfia ao inserir na tela letreiros que informam ao espectador o ano e causa da morte de algumas figuras fundamentais pertencentes ao mundo do crime organizado e que, no enredo, ainda se encontram em plena atividade. Esse aspecto serve para grifar a natureza efêmera desse tipo de poder e estilo de vida. O Irlandês se distingue de outras obras sobre gangsteres (inclusive as comandadas pelo próprio diretor), por desglamourizar e desmitificar o tema.
Orquestrado magistralmente por Scorsese, o longa conta com um time de peso. De Niro e Pacino encabeçam um elenco que ainda conta com nomes como Joe Pesci (que se retirou da aposentadoria brevemente para atuar em O Irlandês) Harvey Keitel e Anna Paquin que, apesar do papel aparentemente pequeno, é a personagem com quem o espectador mais chega próximo de se identificar. A visão que ela tem do pai, Sheeran, a assombra, pois ela parece ser a única que consegue captar com exatidão quem é aquele homem de verdade e os obscuros segredos que ele carrega consigo.
Mas não é apenas por conta do elenco escalado e por se ambientar em um cenário já conhecido pelo diretor que o longa é funcional. Impressiona a riqueza de detalhes; os movimentos de câmera; o pleno domínio da mise-en-scène; a notável reconstituição da época; os efeitos visuais primorosos (especialmente no tocante à técnica utilizada para rejuvenescer os atores na tela); a maneira como Scorsese conduz sua narrativa e esmiúça essa história real sem jamais torná-la cansativa ou arbitrária, a despeito das mais de três de duração – e, aqui, o mérito é sobretudo da montagem de Thelma Schoonmaker, também colaboradora habitual do diretor, que confere um ritmo lento, mas nunca exaustivo ao longa. E o olhar de Scorsese é meticuloso, severo, até mesmo técnico sobre o tema e a história que se propõe a contar. Mas, nem por isso, desprovido da inegável paixão que o cineasta nutre pelo seu ofício. Fases distintas do diretor parecem, ora conversar, ora colidir. O dinamismo, efervescência e energia de suas obras mais cultuadas no passado encontram a maturidade, o teor reflexivo e contemplativo de seus títulos mais recentes.
A cena final, quando Sheeran pede que a porta do quarto do asilo que ocupa mantenha-se entreaberta, remete ao instante em que o ex-mercenário da mafiosa família Bufalino reflete e discursa sobre o fim definitivo com a morte e a cremação. É como se o protagonista lutasse desesperadamente para que sua vida não se encerre, que a porta não se feche, permaneça aberta para alguma outra possibilidade de continuar. Também não há como não se recordar do momento em que a porta permanece entreaberta em O Poderoso Chefão, revelando à Kay (Diane Keaton), a dolorosa verdade que ela luta para esconder de si mesma a respeito de seu marido Michael (Al Pacino).
Mas, apesar das inevitáveis comparações, seja com a trilogia do Chefão, seja com os próprios longas de Scorsese que abordam o assunto, O Irlandês deve ser visto e apreciado pelo que ele é. Um longa melancólico sobre a ascensão e decadência da máfia. Lançado pelo serviço de streaming, Netflix, este é outro grande trabalho a figurar na galeria de obras-primas do diretor.
*Lembrando que ambos, De Niro e Pacino, integraram o elenco de O Poderoso Chefão Parte II, de 1974, clássico de Francis Ford Coppola, com o qual este guarda paralelos, porém, não chegaram a atuar juntos em nenhum momento do filme. Ambos só foram dividir realmente a cena mais de vinte anos depois, em Fogo Contra Fogo de Michael Mann, lançado em 1995.
Andrizy Bento
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