A primeira vez em que ouvi falar de The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia em português), pensei se tratar de uma trama de época. Qual não foi minha surpresa quando descobri que a narrativa de Margaret Atwood era situada em um futuro distópico? Fico ainda mais assustada ao ler determinadas notícias (um exemplo é a resolução do Conselho Federal de Medicina, autorizando médicos a realizar procedimentos invasivos e altamente dolorosos em gestantes, mesmo contra a vontade delas, tirando o direito das mulheres de recusá-los) e perceber que a realidade retratada em O Conto da Aia pode estar mais próxima de nós do que imaginamos. Talvez por isso mesmo tenha me passado pela cabeça se tratar de uma trama de época. O universo apresentado na obra é tão retrógrado e medieval e aquelas práticas narradas parecem pertencer a um passado sombrio, quando mulheres não tinham voz e nem poder de decisão sobre suas vidas e seus corpos.
A República de Gilead – situada no território ocupado anteriormente pelos Estados Unidos – é totalitária, militarizada, patriarcal. A bíblia é a nova constituição. O corpo das mulheres é de propriedade do governo. Após um atentado contra o Presidente, que culmina em sua morte, um grupo fundamentalista e cristão toma as rédeas da nação por meio de um golpe de estado. Com a baixa taxa de natalidade, devido à poluição do ambiente e outros fatores, as mulheres que ainda são férteis passam a ser utilizadas como instrumentos de procriação para famílias elitistas. Elas são as Aias. Cobertas dos pés à cabeça. Proibidas de sentir, de desejar, de viver. O estupro é permitido por lei. O aborto é punido com a morte, não importam as circunstâncias. A culpa é sempre atribuída à mulher. Se ela foi vítima de estupro coletivo, por exemplo, a culpa é dela, por ter seduzido um grupo de homens que não consegue refrear seus próprios instintos, pois essa é a natureza deles. O comportamento patriarcal é sempre validado.
A cena em que o cartão de crédito da protagonista é recusado pela primeira vez e, então, seu chefe anuncia que ela e suas colegas estão dispensadas do trabalho, pois tornou-se uma prática ilegal empregar mulheres, me impactou de uma maneira que eu sequer consigo descrever. Ser privada de sua liberdade, de seu poder de tomar decisões, de viver a sua própria vida… Não consigo imaginar nada mais assustador.
Às mulheres que não são férteis, as opções se resumem a serem Marthas (que atuam como domésticas nas casas da elite), os raros bordéis ilegais que ainda restam e resistem, ou as colônias, nas quais trabalham até a morte no recolhimento de lixo tóxico. Inclusive, é para as colônias que são enviadas as rebeldes.
Eu ainda não li o livro da Margaret Atwood e nem vi a série da Hulu, que já foi comentada por aqui pela Gaby Matos. Mas gostei da forma como o texto foi disposto nos quadros da graphic novel e como o tom de vermelho é trabalhado na obra – é a cor do uniforme das Aias e do sangue em profusão que jorra pelas páginas repletas de uma violência crua e tão absurdamente normalizada dentro desse universo. As ilustrações, aquarelas e tintas de Renée Nault retratam Gilead com uma crueza assombrosa. Sua arte é visceral, espelha a desesperança e melancolia em cada traço, ressalta o teor sombrio da narrativa. Por vezes, a graphic novel assume contornos de história de horror e Nault parece situá-la em uma atmosfera de pesadelo. Suas tonalidades vivas, os elementos que evadem para fora dos limites dos quadros e os espaços em branco e vazios são muito significativos. Refletem a brutalidade a que são submetidas as mulheres de Gilead, a angústia e confusão que as toma, o desejo de fuga, enfatizam o ódio infundado e enraizado na sociedade, bem como o torpor e a solidão que assaltam a protagonista, Offred (na qual a trama se concentra), e tantas outras como ela.
E mesmo nessa realidade, há aquelas que resistem.
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “O Conto da Aia (Graphic Novel)”