Tarantino subverte novamente a história e compõe ode à velha Hollywood, especialmente aos westerns – o tributo ao gênero está presente desde o título que faz alusão ao clássico de 1968, dirigido por Sergio Leone, Era Uma Vez no Oeste.
A notícia de que o diretor responsável por clássicos cultuados como Pulp Fiction e Kill Bill abordaria em seu nono filme a noite perturbadora em que Sharon Tate, então grávida de oito meses de Roman Polanski, foi assassinada por um grupo de discípulos de Charles Manson soou, no mínimo, inusitada na época de sua divulgação. Quentin Tarantino dirigindo um filme baseado em fatos? Aquela noite se tratou, sem dúvida, de um filme de terror para os envolvidos, mas infelizmente muito real. E o cineasta, acostumado à violência gráfica em profusão em seus longas, teria um prato cheio para explorar esse cruel e terrível episódio na tela. No entanto, o que vemos em Era Uma Vez… em Hollywood é algo que passa bem longe de fidelidade aos eventos como estes se desenrolaram naquela noite fatídica. O longa se concentra nos antecedentes do crime, focando em histórias distintas que se entrelaçam, envolvendo um astro combalido, um dublê com má reputação, uma estrela em ascensão, um diretor prestigiado e uma comunidade hippie que, por acaso, é a família Manson.
A trama se situa no final da década de 1960, era de ouro de Hollywood, na eterna cidade dos sonhos, Los Angeles. O western americano, que vivia o ápice da popularidade na década anterior, encontra-se em declínio e os bang-bang à italiana começam a despontar. Outrora estrela de séries televisivas de faroeste, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) agora é um ator decadente com dificuldades para aceitar as constantes mudanças e metamorfoses atravessadas pela indústria do entretenimento, acostumada a substituir suas estrelas por rostos mais jovens, modernos e lucrativos de tempos em tempos. É sabido que Dalton, em um determinado ponto, submerso em seu ego, autocentrismo e arrogância, tentou investir em uma carreira cinematográfica e fracassou, fazendo afundar a última temporada de uma série de sucesso que estrelava para a televisão. Procurando dar certo novamente, trabalhando de maneira incansável em diversos pilotos e aceitando as imposições dos estúdios de sempre interpretar o vilão derrotado da semana, ao invés do intrépido herói, surge a proposta de um executivo, Marvin Schwarz (o glorioso Al Pacino), de alçar novos vôos e ascender outra vez na carreira, protagonizando produções do gênero western spaghetti, na Itália. Devido aos seus preconceitos, ele se mostra relutante em aceitar a princípio, ao mesmo tempo em que pondera as injustiças ao seu redor. Afinal, ele é vizinho de Roman Polanski, cineasta com um perfil intelectual, que se encontra no auge do sucesso após dirigir O Bebê de Rosemary. O decadente astro acredita que merecia uma chance em uma produção da estirpe de Polanski e não o declínio e ostracismo ao qual parece irremediavelmente condenado.
Ao seu lado, está o fiel escudeiro, Cliff Booth (Brad Pitt) mais em paz e tranquilo com sua condição marginal, aceitando o impiedoso e pouco glamouroso fardo de dublê oficial de Dalton sem reclamar. Cliff vive com seu cachorro em um humilde trailer, que contrasta totalmente com a exuberância da mansão de Dalton. Há uma lenda a seu respeito, de que ele assassinou a própria esposa, o que acaba se tornando um obstáculo para que consiga trabalho em uma indústria competitiva por excelência. Uma briga com Bruce Lee nos bastidores da série O Besouro Verde, em que atuaria novamente como dublê, acaba lhe custando o emprego. Cabe a ele continuar como motorista e faz-tudo de Dalton.
Logo, o caminho de Cliff se cruza literalmente com o da hippie Pussycat, (presença luminosa de Margaret Qualley), a quem ele oferece uma carona até o Spahn Ranch – antiga locação de filmes e seriados de faroeste de propriedade de George Spahn. Cliff se aventura perigosamente por lá e se vê às voltas com os hippies que habitam o rancho, que nada mais são do que os discípulos de Charles Manson. Segundo a história oficial, era de lá que a família Manson partia para cometer seus cruéis e vis assassinatos. Uma das seguidoras do psicopata, Squeaky (aqui interpretada por Dakota Fanning), se encarregava das atividades domésticas e de servir a George com sexo, em troca de moradia gratuita para os demais pertencentes ao culto. Tarantino não se limita a pintá-los como puramente assassinos, cruéis e sem individualidade. Mas também não injeta traços de simpatia em nenhum deles. Pussycat (50% ficcional) é a personagem mais desenvolvida do grupo. Os demais até carregam uma aura sombria, mas são retratados como excêntricos, caricatos e pouco inteligentes.
Todo o elenco está muito bem e cada um dos atores se mostra à vontade em seu respectivo personagem. Vale conferir Luke Perry em seu último papel (o ator faleceu em março deste ano). É com extrema naturalidade que ele dá vida a Wayne Maunder, ator que contracena com o protagonista, Rick Dalton. E falando novamente nele, tanto DiCaprio quanto Pitt entregam atuações perfeitas, com um timing certeiro e uma química imbatível na tela. A maneira como Tarantino constrói seus heróis nesse filme é até surpreendente. Explico: dificilmente os personagens do diretor ganharam tanta espessura e personalidade como aqui (nem mesmo Beatrix Kiddo, a noiva de Kill Bill). O cineasta está acostumado a destacar seus contos de vingança, a focar e investir nas narrativas, não tanto nos personagens.
O diretor é um apaixonado por cinema e sua obra é um claro atestado disso, repleta de referências e alusões a filmes B que permearam sua juventude e seu tempo livre enquanto trabalhava em uma locadora de vídeos. E em seu novo filme, o realizador aproveita para fazer um tributo ao cinema por meio de um conto bem elaborado e irreverente sobre a velha Hollywood, revisitando os tempos áureos dos faroestes, resgatando a magia quase inocente e livre de moralismos daquela época, com especial destaque para os bastidores da indústria cinematográfica. Tarantino brinca com a estrutura e a estética do gênero western – algo que não é novidade para ele, vide Django Livre – ao mesclar ficção e realidade de maneira audaciosa e criativa. Ao mesmo tempo, não se poupa de seguir a fórmula que o tornou bem-sucedido e que já é tão conhecida de seus velhos fãs. Novamente, temos um grande elenco, uma dezena de personagens marcantes – ainda que com pouco tempo de trama -, doses cavalares de um humor corrosivo e absurdo e violência desenfreada, despejada na tela sem qualquer constrangimento ou moderação. O diretor ainda trabalha com as habituais quebras de clímax e expectativa, tão características de seu cinema – trilha sonora e cenas grandiosas de ação sofrem cortes abruptos em prol de diálogos verborrágicos que ocupam boa parte da narrativa. Ok, então é o cineasta se mantendo em sua zona de conforto? Sim, ele é bem fiel ao estilo que o consagrou. No entanto, não soa como simples mais do mesmo pelo fato de o longa ser assumidamente autorreferente, quase assumindo a condição de um balanço da carreira do cineasta. Para tanto, ele utiliza sabiamente elementos de seus filmes anteriores a favor de sua nova trama. Também temos um diferencial: uma narrativa mais linear.
Aliás, falando em linearidade, um aspecto que sempre chamou a atenção no cinema de Tarantino é a edição. E quando a encarregada deste item era a saudosa Sally Manke, falecida em 2010, este era um dos artigos de luxo da obra do diretor. Depois disso, Tarantino entregou outros bons filmes como o já mencionado Django Livre e Os Oito Odiados, mas a montagem, o ritmo e o timing já não eram mais os mesmos. O que nos leva a uma indagação: o quanto o filme é mais do montador do que do diretor? A montagem e direção são itens de igual importância e, no caso de Manke, ela fazia um trabalho exímio. Ainda que os filmes do cineasta fossem repletos de quebras cronológicas, idas e vindas na narrativa, Manke sabia juntar e dar sentido às peças, conferindo um ritmo uniforme para os longas. Não que o editor Fred Raskin não tenha seus méritos, mas no que concerne aos aspectos espaciais e temporais, há algumas nítidas falhas e deslizes que prejudicam o ritmo da trama aqui e ali. A obra jamais peca por ser cansativa, contudo, uma ou outra coisa poderiam, sim, ter um corte melhor. Um exemplo é a cena em que Sharon Tate (portada por Margot Robbie como uma musa idealizada e intocada) surge assistindo a si mesma em uma tela de cinema. Serve apenas para justificar a forma como o cineasta a retrata, mas é dispensável para o conjunto e sua inserção soa fora de contexto.
Outro de seus deméritos é o voice-over que surge vez ou outra. Era realmente necessário o emprego de um artifício tão redundante e exaustivo quanto a narração? E justo em um longa do cineasta em questão?
Felizmente, os pontos positivos superam os negativos. Impressiona, por exemplo, o trabalho de reconstituição de época – figurinos, maquiagem, cenografia… Tudo muito eficiente e em seu devido lugar. A maneira como recria a atmosfera lúdica do cinema da década de 1960 e conduz as cenas de ação, injetando humor e violência, apresentando rigorosos e simétricos planos e elaborados movimentos de câmera, só comprovam o quanto o cineasta não perdeu a mão e continua um mestre na arte da mise-en-scène. E como se trata de um longa de Tarantino, a trilha sonora é outro de seus achados, incluindo The Mamas & The Papas, Neil Diamond e a clássica Mrs. Robinson de Simon & Garfunkel.
Convém dizer que, por mais carismáticos que Dalton e Booth sejam, não deixa de ser curiosa a coexistência destes personagens ficcionais com outro factuais, ainda mais quando o contexto é os antecedentes de uma barbárie. Trata-se de uma aposta arriscada que deixa o espectador se perguntando até metade da projeção qual é o sentido de tudo isso. Por que suas histórias se cruzam justamente com a de Polanski e Tate? No entanto, a criação dessas figuras é justificada nos momentos finais do longa. Tarantino os transforma em seus heróis improváveis ao fazê-los evitar que o pior aconteça e que o grupo de assassinos sequer chegue à mansão de Sharon Tate. Em uma explosão de violência, tiros, facadas, massacres, mordidas de cão e um inusitado lança-chamas, que compõe uma sequência de ação sangrenta e ilógica, os dois heróis salvam a noite e a vida daqueles inocentes, lhes devolvendo o final feliz que a vida real lhes roubou.
Não é o melhor filme de Quentin Tarantino, mas é bem-vindo especialmente aos fãs que identificam seu estilo de imediato. Vale a pena ver, afinal, transformar um crime brutal em um conto sobre a era de ouro de Hollywood e ainda no melhor estilo faroeste, exige um talento singular para contar uma história que, sem dúvida, o cineasta já mostrou que possui. Concedendo a si mesmo a autoridade e o poder de subverter eventos históricos, o realizador confere à trágica história real um final mais feliz, ainda que totalmente nonsense. O resultado é ousado e, como não poderia deixar de ser, controverso. Tarantinesco – para se utilizar um neologismo bem apropriado.
Andrizy Bento
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