O Homem-Aranha é um dos personagens que mais ganhou reboots no cinema em um intervalo relativamente curto de tempo. O primeiro blockbuster do aracnídeo, estrelado por Tobey Maguire e dirigido por Sam Raimi, estreou em 2002 e, juntamente com X-Men de 2000, contribuiu para o renascimento de um filão hoje altamente explorado por Hollywood e que ainda não apresenta sinais de exaustão: as adaptações cinematográficas de quadrinhos – que vinham, até então, amargando fracassos artísticos e comerciais com exemplares duvidosos e de mau gosto como Batman & Robin e Spawn – o Soldado do Inferno (ambos de 1997). Homem-Aranha 2 (2004) caiu nas graças do público e da crítica e foi considerado por muitos, na época, a melhor adaptação de HQs de todos os tempos. Infelizmente, o teioso conheceu a fúria dos fãs e o bombardeio dos especialistas com o truncado Homem-Aranha 3 (2007).
Poucos anos depois, em 2012, o herói foi revisitado pelo cineasta Marc Webb e ganhou um novo intérprete: Andrew Garfield, que teve a oportunidade de vestir apenas por duas vezes o traje de Aranha e sofreu rejeição de quase todos os lados com longas bem pouco expressivos e memoráveis. O personagem retornou em Capitão América: Guerra Civil (2016), ao lado dos Vingadores, após uma festejada parceria entre a Marvel Studios e a Sony Pictures – que detém os direitos cinematográficos do cabeça de teia desde 1999. Felizmente, em seu filme solo, Homem-Aranha: De Volta ao Lar, não precisamos ver novamente a origem dos poderes de Peter Parker sendo recontada e nem a morte de Tio Ben. Tom Holland passou a usar a indumentária característica do personagem com dignidade e compromisso, em uma adaptação agradável e bastante eficiente das HQs, mesmo que contando com as tradicionais liberdades criativas e licenças poéticas.
Porém, é com a mais recente animação em longa-metragem Homem-Aranha no Aranhaverso que o teioso conseguiu atingir todo o potencial que os fãs dos quadrinhos sempre desejaram ver no grande ecrã. Portanto, não estranhe se você ler por aí que esta é não somente a melhor animação do ano, como uma das melhores adaptações de HQs de todos os tempos e um seríssimo candidato a integrar um Top 10 de melhores do ano de muito cinéfilo por aí. Não é exagero. Homem-Aranha no Aranhaverso é exatamente isso que estão alardeando.
Após uma introdução que sintetiza de maneira eficiente, divertida e dinâmica a origem do personagem, fazendo constantes alusões e referências a toda trajetória do Aranha nos quadrinhos e nos cinemas, sempre respeitosamente – mesmo a reprodução da famigerada dancinha do Peter Parker emo de Homem-Aranha 3 não insulta o material original, mesmo que este até merecesse – a trama passa a acompanhar Miles Morales, um adolescente cool egresso do Brooklyn, que curte grafite e a cultura das ruas. O jovem se sente deslocado em um colégio elitista, no qual foi matriculado por seu pai, um policial que quer o apenas o melhor para o seu filho, porém, não hesita em constrangê-lo em frente aos seus colegas. Após ser picado por uma aranha aprimorada e testemunhar um acontecimento brutal envolvendo Peter Parker e executado pelo Rei do Crime, Miles torna-se o herdeiro do legado e do uniforme do Aracnídeo. O plano megalômano – algo bem típico das HQs – do vilão Wilson Fisk, o Rei do Crime, consiste em roubar recursos tecnológicos de outras dimensões. Ainda que um pouco over e hiperbólico, esta é a grande sacada do longa e que faz com que as inúmeras realidades paralelas colidam e, consequentemente, os diferentes Homens-Aranhas existentes no universo – a saber: Peter Parker, Spider-Gwen, Homem-Aranha Noir, Peni Parker e Peter Porker – se reúnam a Morales e passem a trabalhar em equipe de modo a deter o poderoso Rei do Crime. Atentem para o Aranha Noir, melhor interpretação de Nicolas Cage em muito tempo.
A animação é esteticamente primorosa, especialmente ao combinar diferentes estilos. Equilibra o traço mais realista da animação em computação gráfica com a vibe dinâmica de videogame, a atmosfera noir, a estética dos animes e o cartoon mais clássico. Isso tudo sem jamais abandonar o clima das comics, dividindo a tela em quadros e apostando na inserção de balões de fala e onomatopeias que indicam efeitos sonoros em diversas sequências. Também está repleto de cenas que aludem às splash pages – um termo quadrinístico que designa aqueles momentos impactantes, reveladores e bombásticos em uma HQ e que costumam tomar uma página inteira, de modo a obter o devido destaque.
Além de um deleite em termos artísticos, Homem-Aranha no Aranhaverso surpreende pela qualidade do texto; por quão bem amarrada e intrincada é a trama e o modo eficiente como seus subplots são alinhados. Não bastasse os diálogos inteligentes e bem humorados que permeiam a narrativa, bem como o respeito ao cânone e essência do Aranha nas HQs, os momentos mais emocionais são bem dosados e impactam o espectador pela sua honestidade e o caráter genuíno com que se apresentam, sem induzir o público ao sentimentalismo barato. O que mais se destaca na animação é o fato de que ela é uma declaração de amor ao Homem-Aranha, a tudo o que ele representa para a cultura pop, às diferentes releituras que ganhou em todas as mídias nas quais ele imprimiu sua marca e lançou sua teia. Não importa quão pouco significativa foi sua passagem por algum desses níveis de entretenimento – é parte do glorioso universo e da mitologia do aracnídeo e merece ser relembrada.
O Homem-Aranha é um símbolo. Um símbolo de que os atos de heroísmo nem precisam sem grandiosos, basta que façam a diferença para alguém. Ele é conhecido como o “amigão da vizinhança” e seu trabalho é proteger quem faz parte dela, não importam os riscos. Está expressa em uma fala de Mary Jane, a eterna namorada do Homem-Aranha, e na frase de Stan Lee que toma a tela ao final da animação – como um carinhoso tributo ao mestre que faleceu há poucas semanas – “Aquela pessoa que ajuda os outros simplesmente porque é o que deve ser feito, e porque é a coisa certa a fazer, é sem dúvidas um super-herói”. O que significa que todos podem ser heróis. Era isso que Stan queria transmitir ao público quando elaborou o personagem ao lado do também saudoso Steve Ditko. O Homem-Aranha pode ser qualquer um. Não precisa ser um magnata ou alienígena. Pode ser aquele garoto franzino, ignorado na escola, com nenhum dinheiro no bolso e criado por uma tia que sempre o amou como filho. O conceito de família sempre foi o mais importante para ele. Afinal, estamos falando de um personagem cujo um dos momentos mais memoráveis dos quadrinhos é justamente seu casamento com Mary Jane, que deu início a uma nova fase em sua vida. Obviamente, foi a morte do Tio Ben que o estimulou a ser o Homem-Aranha e lutar por justiça. E os Aranhas existentes nas mais diferentes dimensões possuem algo essencial em comum: todos eles decidiram lutar por um mundo melhor e ajudar aos seus semelhantes após uma perda irreparável na família. E tudo isso é traduzido para as telas de maneira competente por Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, que assinam a direção da animação.
Para completar, Homem-Aranha no Aranhaverso traz uma das mais divertidas cenas pós-créditos de um filme estrelado por um personagem da Marvel. A tradição, iniciada com a inusitada cena entre Charles Xavier e Moira MacTaggert em X-Men: O Confronto Final, ora escorregou com momentos dispensáveis que sequer valiam nossa permanência no cinema após minutos intermináveis de créditos finais, ora nos deixou com água na boca, ansiando pelos próximos filmes da Marvel. Aqui, ela vale a espera, afinal, Homem-Aranha é uma estrela de diversas sagas nos quadrinhos, uma presença proeminente nos cinemas, nas animações, nos jogos de videogame e em produtos licenciados. E também é um meme. Outra prova de que o personagem sobrevive ao teste do tempo, sempre se reinventando de modo a dialogar com diferentes gerações.
Homem Aranha no Aranhaverso é indicado para um público mais moderno e conectado, que gasta muito de seu tempo em redes sociais, mas também para todos os fãs de quadrinhos e, especialmente, da mitologia do amigão da vizinhança. Pescar os easter-eggs espalhados pelo longa é um bônus. E é por essas e outras que esta é, sem dúvida, uma das melhores adaptações de um herói de quadrinhos para as telas.
O filme estreia dia 10 de janeiro de 2019 nos cinemas de todo o país.
Andrizy Bento
7 comentários em “Homem-Aranha no Aranhaverso”