Em tempos de crise, os sábios constroem pontes. Os tolos constroem barreiras.
Martin Luther King, em uma de suas mais célebres frases, dizia que o ser humano deve desenvolver, para todos os seus conflitos, um método que rejeite a vingança, a agressão e a retaliação. Os ideais pacifistas do pastor protestante e um dos líderes dos direitos civis dos negros durante a sombria década de 1960, contrastava com os do ministro islâmico e também ativista Malcon X. Ambos eram as cabeças por trás de movimentos negros e lutavam pelo fim da segregação racial e da hegemonia branca. Porém, com armas diferentes. King era um idealista que buscava a igualdade entre as raças e sonhava com a convivência pacífica entre brancos e negros. Malcon era mais radical e enérgico em seus discurso, postura e posicionamento político.
Estamos falando de uma época em que negros e brancos não podiam frequentar e dividir os mesmos espaços públicos, devido à intolerância destes últimos. Que negros tinham de entrar pela porta de trás dos estabelecimentos e ocupar os assentos traseiros no transporte coletivo. Que diversas unidades de comércio portavam orgulhosamente, em suas fachadas, placas com o aviso: só atendemos brancos! Haviam placas similares até mesmo em bancos de praça. Sem esquecer da divisão de banheiros públicos!
É vergonhoso, mas é verdade. O mais triste é saber que esse passado nem está, assim, tão distante.
Quase sete décadas mais tarde, as discussões acerca de igualdade entre raças (bem como entre gêneros) ainda estão em pauta. Vistos como imperativo por uma grande parcela da população que enxerga na mídia e na indústria do entretenimento instrumentos de teor revolucionário, que fomentam o ativismo, exercendo um papel importante como catalisador de necessárias transformações; e outra parcela que vê como mimimi, discursinho politicamente correto engajado e chato, “antigamente se fazia piadas com negros nos humorísticos televisivos e era tudo muito mais legal”. Fala o branco hétero de classe média que nunca se viu como alvo de zombaria de esquetes que costumavam satirizar o oprimido ao invés do opressor.
Mas isso é discussão para um outro momento. O importante é salientar que o preconceito ainda existe e se faz muito presente em diversos setores da sociedade: no mercado de trabalho, em espaços públicos, de lazer, dentro da nossa própria casa… Negar isso, é fechar os olhos para uma dura realidade que requer mudanças urgentes.
Mais de sessenta anos se passaram e as palavras e ações de King e Malcon X ainda precisam ser ecoadas e relembradas.
Eis que surge uma adaptação cinematográfica de uma história em quadrinhos trazendo duas figuras que personificam os supramencionados líderes ativistas. E, não! Desta vez eu não estou falando de X-Men, de Xavier e Magneto. Com T’Challa (Chadwick Boseman) e Killmonger (Michael B. Jordan), a metáfora dos movimentos negros nos Estados Unidos e a consequente luta por igualdade ou supremacia, ganha contornos mais definidos, profundos e um tom de realismo (ainda que a narrativa seja calcada na fantasia) do que qualquer filme dos mutantes jamais alcançou. Longe de mim desmerecer, afinal X-Men 2 é preciso em sua alegoria acerca do preconceito racial e permanece sendo um dos meus filmes favoritos baseados em HQs.
O filme mais adulto da Marvel até agora, toca em pontos cruciais. É politizado, mas sem perder o senso de diversão e entretenimento. Trata-se de um longa de origem bem amarrado, mas não se rende ao excesso de exposições para justificar aquele universo concebido na tela e nem a existência do herói em um mundo já tão habitado por seres poderosos e uniformizados (lembrando que o filme é parte integrante do MCU). Pelo contrário, a introdução da nação, dos personagens e de suas lendas é retratada de maneira orgânica e tomando um tempo adequado de tela. O roteiro se preocupa mais com a representatividade e em transmitir uma mensagem, compreendendo o peso e relevância de um símbolo como o Pantera Negra para seu público, ao invés de se restringir a uma aventura isolada que apenas galga mais um degrau para o vindouro Guerra Infinita. É um filme que existe individualmente, independente de Vingadores, mas não nega ser parte do todo.
Wakanda é uma nação africana tecnologicamente avançada por dispor de vibranium – um metal fictício que absorve toda a energia vibratória do espaço ao redor, assim como a energia cinética direcionada a ela. É esse elemento o responsável pela evolução da terra governada pelo Rei T’Chaka (John Kani), e o que gera o conflito que constitui a espinha dorsal de Pantera Negra.
Após a morte de seu pai, o Rei de Wakanda, o príncipe T’challa deve sucedê-lo e assumir sua posição como o homem mais poderoso do reino e como Pantera Negra. Um desconhecido que atende pela alcunha de Killmonger surge para reivindicar o trono, revelando-se perante o conselho tribal como parte da família de T’Challa e, portanto, desafiando o atual rei para o ritual de combate que irá decidir quem deve ocupar o trono. T’Challa é derrotado em um violento confronto, deixando Wakanda nas mãos do extremista Killmonger que prega a supremacia de sua raça e o extermínio de todos aqueles a quem vê como algozes, privilegiados e opressores, isto é, o homem branco e sua influência imperialista no mundo.
Embora possamos enxergar bem claramente suas intenções como uma representação moderna dos movimentos negros da década de 1960, mas com contornos de fábula, Pantera Negra foge de um tom forçada e fundamentalmente ideológico. É um conto político com um background já conhecido, mas dotado de um olhar atual. Acima de tudo, Pantera Negra usa acertadamente sua abordagem e o fascínio que sua lenda exerce como um veículo preciso para narrar o conflito de ideias entre aqueles que, supostamente, deveriam estar do mesmo lado; e no qual os oprimidos mostram aos opressores que uma guerra se luta justamente. De fato, a arma mais poderosa de T’Challa não é seu uniforme feito de vibranium ou qualquer dos artefatos desenvolvidos brilhantemente por sua irmã Shuri (Letitia Wright), mas sua honra e nobreza. E, por isso, ele é um líder. Por isso é a figura ideal para governar Wakanda, ao contrário do radical Killmonger.
O vilão, desta vez, é bem justificado. Ao contrário de outras incursões da Marvel nas telonas que tem na figura do vilão o principal ponto fraco – limitando-se a um simples genérico do herói, por vezes unidimensional, Killmonger até pode soar como tal a princípio, mas se revela um personagem composto de diversas nuances. Cegado pela raiva, ele surge como o ponto de ruptura que abala o governo pacífico de Wakanda. Há uma motivação para sua revolta, fazendo com que seus atos sejam até compreensíveis aos olhos do espectador, embora não se justifiquem. Você entende os seus fins, apesar de não concordar com os meios. Killmonger peca exatamente onde qualquer rebelde extremista é capaz de pecar: se equiparar ao seu opressor ao invés de se mostrar melhor do que ele. T’Challa por sua vez, como um homem inteligente e bem orientado, prega a diplomacia, aprende com seus erros e sabe que o radicalismo nunca é a melhor solução.
Além do protagonista e seu nêmesis, o longa é composto por inúmeros personagens interessantes. Especialmente no tocante às figuras femininas. Pantera Negra apresenta um amplo leque de mulheres poderosas e inteligentes. De Ramonda (Angela Bassett) -Rainha de Wakanda e mãe de T’Challa – à Nakia (Lupita Nyong’o) – o interesse amoroso do herói, que integra as forças especiais femininas da nação fictícia retratada na tela – passando pela general Okoye (Danai Gurira) e pela princesa Shuri – irmã de T’Challa, especialista em tecnologia e responsável pelo aperfeiçoamento no uniforme do Pantera.
A história, bem construída, é amparada por um visual fantástico. A fotografia valoriza as belas paisagens e contempla as criativas cenas de batalha, todas muito bem executadas. As sequências de luta (especialmente a do clímax do filme), e a frenética perseguição na autoestrada, ainda no início do longa, são garantias de bom cinema de ação. O design de produção é notável no acuro da criação daquele universo, no grafismo das lutas e no visual dos personagens, dando destaque às exímias caracterizações. Sem falar no trabalho com as cores, apresentando uma paleta luminosa, enfatizando os tons de púrpura. Nesse sentido, Djalia – o plano espiritual que representa a memória coletiva de Wakanda – é o cenário que ganha mais realce e esplendor, além de parecer diretamente extraído dos quadrinhos e fazer uma possível referência a O Rei Leão 😉
É interessante como a cultura milenar de Wakanda é retratada; como os costumes, tradições e rituais transmitidos de geração para geração tem um peso enorme para seu povo que possui um respeito inegável por esse legado. Ao mesmo tempo em que a tecnologia proporcionada pelo domínio e manuseio do vibranium é um de seus bens mais preciosos. Assim, Wakanda surge convincente na tela, mostrando que nações podem se manter fieis à sua essência e rituais sagrados, ao mesmo tempo em que podem e devem olhar para o futuro e evoluir com o respaldo tecnológico.
O cineasta Ryan Coogler, responsável pelo elogiado Fruitvale Station (2013), comanda um longa inteligente, emocionalmente maduro, com uma narrativa bem estruturada, personagens carismáticos, um visual arrebatador e uma trilha sonora poderosa e característica que abrilhanta ainda mais este que pode ser considerado um dos melhores e mais completos filmes do MCU.
★★★★
Andrizy Bento
18 comentários em “Pantera Negra”