O lúdico é uma característica recorrente do cinema de Guillermo del Toro. O cineasta mexicano é tão hábil ao lidar com criaturas fantásticas que consegue torná-las atraentes seja qual for o gênero adotado para contar suas histórias: sci-fis, adaptações de histórias em quadrinhos, terror, conto de fadas. Sempre as situando em universos inventivos e buscando a universalidade em suas narrativas.
Talvez a maneira mais correta de classificar A Forma da Água seja como romance fantástico. Mas há quem o defina por aí como um conto de fadas erótico. Não é para tanto. Confesso achar cômico o fato de a cena de sexo entre a humana e a criatura ter causado tanto estardalhaço – polarizando o público entre defesa apaixonada e total aversão. Reduzir o filme apenas a isso é um pecado dos grandes. Somos, assim, tão conservadores em relação ao sexo (pelo menos publicamente) para permitir que essa cena nos cause tamanho impacto? Ora, A Forma da Água retrata, sim, o sexo, explorando a intimidade dos personagens de maneira singela, bonita e até curiosa. Mas a conexão entre eles transcende o físico. Há toda uma gama de sentimentos envolvida nessa incomum relação. O longa de del Toro trata-se, sobretudo, de uma história de amor pura e genuína.
No auge da Guerra Fria, a corrida espacial, disputada pelos Estados Unidos e União Soviética, visava a supremacia no campo da tecnologia. Nesse cenário, uma criatura fantástica e misteriosa (Doug Jones) é mantida cativa em um laboratório experimental e sigiloso do governo americano. Elisa (Sally Hawkins), uma mulher com dificuldades para se comunicar verbalmente e que costuma se expressar por sinais, trabalha como zeladora no local, ao lado de sua amiga Zelda (Octavia Spencer). Cumprindo uma rotina praticamente imutável e contornando da melhor maneira possível seu problema de mudez, ela se vê, de repente envolvida, cativada e fascinada pela criatura aquática mantida no laboratório. Ao lado de Zelda e de seu vizinho e melhor amigo, o solitário Giles (Richard Jenkins), trama e executa um plano de fuga de modo a libertar o anfíbio. Mas enquanto o momento de devolvê-lo a seu habitat natural não chega, ela o mantém em sua casa, aguardando pacientemente. À medida que vão se conhecendo melhor, eles se apaixonam.
O conto de fadas deltoriano estrutura-se como uma história de amor clássica que guarda ecos do cinema noir e de musicais hollywoodianos antigos, inclusive prestando homenagens e fazendo referência a estes. Há uma cena de musical belíssima protagonizada por Sally Hawkins, em que finalmente sua voz se desprende da garganta, embora tudo ocorra em um plano de fantasia. Igualmente bela é a sequência em que a criatura marítima vê pela primeira vez um cinema e fica encantado pela novidade. Mas, muito mais do que uma ode ao cinema, A Forma da Água é um conto sobre humanidade.
Além do desempenho formidável de Hawkins, Octavia Spencer ganha destaque ao trazer uma vibe cômica para o filme. Juntas na tela, as duas atrizes são puro deleite. Outro ponto que conta a favor do longa de del Toro, além das ótimas atuações, é a admirável construção de personagens. Todos tem seu momento para brilhar e são agraciados com a total entrega de seus intérpretes.
O tratamento das cores – nas óbvias (mas nem por isso menos dignas de nota) tonalidades de azul, bem como o vigor dos contrastes – e a exuberante cinematografia de Dan Laustsen perpetuam a aura de fábula, ambientando-a em uma atmosfera noir e compondo alguns dos frames mais lindos e inspirados do ano.
A Forma da Água é, certamente, dos filmes mais bem resolvidos de del Toro. O cineasta consegue tornar o absurdo palatável; transmitir uma mensagem universal sem, contudo, abandonar o tom de fantasia e mistério que permeia sua narrativa. Trata-se, efetivamente, de um conto de fadas para adultos, mas adultos sensíveis que apreciam a singeleza, a singularidade e a ideia de que o amor vai muito além das aparências. Um clichê, mas um clichê bem contado.
★★★★
Andrizy Bento
adorei essa crítica. Amo realismo fantástico e gosto do Benício desde “O labirinto do Fauno”. Ansiosa pra ver “A forma da água” que gostei a começar pelo título, achei poético!