Em 1982, Ridley Scott levou às telas um filme baseado na obra seminal de Philip K. Dick, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Na época, sofreu o ostracismo do público nas salas de cinema. A trama, mais cerebral e menos acelerada do que os típicos filmes de ação que dominavam as telas naquela década foi prejudicada pelo marketing equivocado e pela concorrência – era ocasião do lançamento de E.T. – O Extraterrestre de Steven Spielberg. Blade Runner – O Caçador de Andróides foi redescoberto posteriormente, tornando-se um clássico cult atemporal e um marco do cinema, sempre presente na lista dos melhores filmes de todos os tempos.
Exatos trinta e cinco anos após o lançamento do longa original, Dennis Villeneuve (o aclamado diretor de Sicário: Terra de Ninguém e A Chegada) foi o escolhido para comandar a promissora, porém, audaciosa e arriscada continuação de Blade Runner, contando com Ridley Scott na produção executiva, e Hampton Fancher novamente assinando o roteiro.
Não é possível dizer que este filme vai mudar a história da sétima arte como o original o fez na década de 1980 – ainda mais em uma era em que nem mesmo inovações cinematográficas causam o impacto, o alvoroço e a surpresa de outrora. De qualquer forma, Blade Runner 2049 é uma sequência digna de seu antecessor; faz justiça ao longa de Scott em todos os sentidos. Sejam eles técnicos, estéticos ou narrativos. Villeneuve foi a escolha certeira para conduzir a produção, afinal Blade Runner 2049 respeita o cânone do original, além de amplificar seus conceitos na tela.
Ambientado em um futuro distópico, a história se situa trinta anos após os eventos decorridos em Blade Runner – O Caçador de Androides. O que ficamos sabendo, pelos créditos iniciais, é que a Corporação Tyrell, responsável pela produção da primeira geração de Replicantes (androides escravizados em colônias fora do Planeta Terra, criados para execução de tarefas degradantes), foi a falência, tendo seus espólios adquiridos por Niander Wallace (Jared Leto) que se empenha na fabricação de modelos mais avançados – o Nexus-9 que são totalmente obedientes e subservientes. A existência da unidade policial conhecida como Blade Runners, que utilizam formas de repressão contra os Replicantes, se dá pelo fato de que, mesmo alguns dos modelos novos, adquiriram vontade própria em algum ponto. Cabe aos caçadores de replicantes, aposentarem os androides que apresentam esse defeito.
Conforme a história avança, temos conhecimento de uma criança que foi gerada por uma replicante de maneira orgânica. Esta é a missão delegada ao protagonista K (Ryan Gosling): identificar o paradeiro do ser nascido há trinta anos. Em seu tortuoso caminho rumo à conclusão do mistério, ele cruza com Rick Deckard (Harrison Ford), o Blade Runner original que tem uma ligação intrínseca com o caso.
Há, pelo menos, três cenas memoráveis em meio a uma overdose de frames exuberantes: a sequência em que K visita a designer de memórias, Dra. Ana Stelline (Carla Juri) em sua redoma; a luta corporal entre Deckard e K em um lounge que exibe projeções holográficas de Elvis Presley e Marilyn Monroe que soam bem realistas; e o resgate de Deckard no clímax do filme. Para completar, quando o espectador pensa que a trama está mastigada e entregue, surge uma reviravolta que só não é mais impactante por conta dos flashbacks e voice-overs que tiram um pouco do barato da cena. Mas é um dos poucos deméritos ao lado da atuação de Leto, forçado em um papel que foi pensado originalmente para o músico David Bowie.
Uma pena não ter dado tempo de ele participar do projeto…
Falando em atuações, Harrison Ford continua exemplar como Rick Deckard, mantendo o tom de um de seus personagens mais consagrados. Carla Juri confere a doçura e melancolia exatas à sua autora de memórias. Robin Wright, cada vez melhor, esbanja presença de cena no papel da Tenente Joshi. Sylvia Hoeks como Luv, compõe uma antagonista acima da média. Mas é Ryan Gosling que se destaca, injetando a frieza e apatia necessárias ao seu personagem; austero na medida certa e sentimental de maneira comedida quando o roteiro exige um pouco mais de emoção de sua parte.
Ainda que o estilo de Villeneuve e ecos de seus trabalhos anteriores sejam evidentes durante a maior parte da projeção (o que é louvável, uma vez que mostra o quanto o cineasta é um autor, algo raro nos dias atuais), é gratificante perceber que ele procurou manter a essência do original, em termos de narrativa e visual. Assim como o filme de 1982, ao invés de uma trama frenética e dinâmica, a história é construída de maneira meticulosa, com uma narrativa instigante e calcada em um enigma de vital importância para o roteiro. O foco é na investigação de um mistério e no desenvolvimento do personagem de Gosling, mas nenhuma das outras figuras é negligenciada por isso. A atmosfera soturna de distopia cyberpunk foi preservada e diversos quadros remetem ao filme original. As discussões filosóficas e metafísicas que o roteiro abrange e incita no espectador ainda constituem o ponto alto da obra.
A assinatura de Villeneuve é evidenciada na composição das cores, nos close-ups reveladores nos personagens – especialmente em seus olhos, uma vez que estes são elementos fundamentais para distinguir humanos de replicantes – nos planos abertos que destacam os cenários deslumbrantes de maneira contemplativa, mas nunca enfadonha. Como de costume, o cineasta é rigoroso na composição das cenas, na simetria dos quadros e no uso da regra dos terços. O jogo de luz e sombras é soberbo e os efeitos visuais são utilizados para servir à narrativa e corroborar a atmosfera proposta e o não o contrário. O longa traz um desenho de produção tão irretocável quanto o original.
E, se me permitem um comentário, é possível notar pela técnica adotada, quais cineastas têm 2001: Uma Odisseia No Espaço como um filme de cabeceira. Esta pode ser uma sequência de um longa de Ridley Scott, que respeita o cânone da produção que o originou e o universo estabelecido naquele filme. Mas a influência estética de Stanley Kubrick é bastante visível.
O novo Blade Runner é capaz de emocionar os fãs da obra lançada em 1982 e atrair espectadores ainda não familiarizados com a história. Uma sequência, sim, mas que não tem cara de continuação. Não é estritamente necessário ter visto o original para entender este novo título. Contudo, é melhor ainda se você o fizer, pois fica um passo à frente na investigação que permeia o filme – inclusive do personagem de Gosling – além de pescar referências (os frames similares; o visual da Mariette de Mackenzie Davis que remete à clássica personagem Pris interpretada por Daryl Hannah em 1982; o cavalo de madeira que parece orientar a história e as questões existenciais que assaltam o protagonista, bem como o unicórnio de origami no filme original).

Felizmente, Blade Runner 2049 não se rende à pura condição de caça-níquel, apresentando uma excelente história, bem estruturada – apesar da longa duração – e cujos elementos dramáticos são bastante equilibrados, sem necessidade de impelir comoção ao público e recorrendo à catarse somente no clímax do filme. Uma curiosa, impressionante e muito bem-vinda revisita ao colossal universo do longa de 1982 e um dos melhores títulos a chegar às telas em 2017.
Obs.: A trilha sonora, a cargo de Hans Zimmer, fica aquém da assinada por Vangelis no primeiro filme. Não é marcante e nem tão catártica quanto a do original. Zimmer apostou em um partitura segura, sem grandes momentos e sem aquela aura perturbadora proposta por Vangelis que unia o clássico ao psicodélico. Uma pena, sim, mas era realmente difícil superar Vangelis nesse quesito.
★★★★½
Andrizy Bento
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