Se você se recorda da longínqua década de 1990, deve-se recordar também que foi a gloriosa Rede Manchete a responsável pelo boom das animações japonesas que dominaram a telinha da TV naquela época. Sobre o caráter pioneiro e inovador da emissora dos Bloch, eu já falei em outra ocasião, mas é fato que a explosão dos mangás e animes foi apenas uma das diversas tendências inauguradas pelo canal.
E foi com esse espírito desbravador (e necessitando desesperadamente de algo que alavancasse o faturamento da emissora), que a Manchete colocou Cavaleiros do Zodíaco no ar, em 1º de setembro de 1994. Logo, as outras emissoras de televisão resolveram embarcar nessa. Especialmente o SBT com Dragon Ball, Guerreiras Mágicas de Rayearth, Fly: O Pequeno Guerreiro dentre outros. Deu-se início a uma verdadeira febre e não demorou para que as bancas de jornais fossem tomadas por Mangás (os quadrinhos japoneses), surpreendendo uma galera que não sabia que estes deveriam ser lidos de trás para a frente; e as editoras brasileiras lançassem mais e mais publicações voltadas para esse mercado e seu público, com longas reportagens especiais e curiosidades acerca das produções japonesas – é o caso, por exemplo, da saudosa revista Herói.
Os responsáveis pelo departamento comercial e de programação da rede Manchete, viram nessa tendência que ela própria inaugurou, não apenas uma galinha dos ovos de ouro, mas um fôlego a mais que garantiria uma sobrevida ao canal que já enfrentava a sua pior crise financeira e se via, dia após dia, prestes a falir. Resolveram, portanto, investir nesse gênero e, além de comprarem os direitos de exibição de outros clássicos como Sailor Moon e Shurato, começaram uma aliança inédita com uma distribuidora americana de animações japonesas para o mercado de home video, a U.S. Manga.
Até aí uma sacada genial, certo? Mas o pessoal da Manchete não sabia muito bem que tipo de produto estava comprando. E isso, logo viria a trazer complicações e dor de cabeça para os profissionais do departamento de edição…
Eis que, no pacote, chegam OVAs com temáticas adultas e munidas de violência gráfica, como Detonator Orgun e Genocyber. Esta última foi a que mais deu trabalho e causou controvérsia na época de sua exibição, como relata o pai dos animes no Brasil, Eduardo Miranda nesse vídeo imperdível. Foram necessários vários cortes, slow motion, sobreposições de cenas, voice-overs para torná-la exibível na TV aberta. Para completar, o bloco U. S. Manga Corps do Brasil era transmitido às 19:00 e ainda que rivalizasse com as novelas da Globo, na época tinha muita criança e adolescente já aficionado por animação japonesa querendo conferir de que se tratavam aquelas séries recém-chegadas por aqui.
E o conceito de que desenho animado é coisa pra criança e está enraizado no público que assiste televisão, nem preciso comentar; é uma colocação equivocada que perdura até hoje. Um senso comum que precisa ser combatido, mas não há grande esforço para tal.
Qualquer dia desses, é possível que eu faça um artigo focado unicamente em U. S. Manga. Por enquanto, vamos tratar da polêmica Genocyber.
Primeiramente, é necessário entender o conceito de OVA’s. Desmembrando o acrônimo, temos Original Video Animation que se refere às animações de, geralmente, um, dois ou três episódios, lançados diretamente para o mercado de home video, sem exibições prévias no cinema, e cuja duração dos episódios varia de 20 a 30 minutos. Podemos até sugerir como equivalente de OVAs, as nossas conhecidas minisséries, mas a verdade é que não há factualmente um equivalente ocidental para o formato. Por vezes, eles podem ser relacionados ou complementares a séries de animação já existentes ou baseado em algum mangá sem, contudo, interferir na narrativa original, funcionando como spin-offs.
Genocyber é uma animação que segue esse formato. Originalmente, tratava-se de um mangá de autoria de Tony Takezaki, publicada em 1993 e que contou com apenas um único volume, tendo sido cancelada pela editora Byakuya-Shobo prematuramente. A obra, no entanto, serviu de base para a criação do anime homônimo, dirigido por Koichi Ohata e produzido através de uma parceria entre o estúdio Artmic e a Bandai Visual. Contando com cinco episódios, o OVA foi lançado diretamente em VHS no ano de 1994. Três anos depois, em 1997, ganhou a telinha da Manchete na faixa U.S. Manga.
O OVA é, sobretudo, bastante cruel e bizarro. Creio que essas sejam as duas palavras que melhor definem a produção. O primeiro arco da história se desenrola na cidade de Hong Kong e o Genocyber do título nada mais é do que uma arma biológica de destruição em massa, criada em laboratório, a partir da fusão de duas irmãs gêmeas com poderes psíquicos e um passado obscuro. Elaine e Diana são vítimas desse vil experimento orquestrado pela organização Kyuryu Group que é a grande antagonista da série. Elaine consegue escapar, mas Diana é enviada em seu encalço. Na busca pela captura de Elaine, um verdadeiro rastro de sangue e corpos chacinados são deixados pelo caminho e esse é o foco da primeira parte do OVA. Ao final de um episódio extremamente confuso e com um parco enredo, ocorre a fusão das duas irmãs após um violento confronto entre elas que culmina em sua transformação em Genocyber e, assim Hong Kong é completamente devastada.
A segunda parte do anime é situado em um navio de guerra, Alexandria. Elaine se encontra em Karain (um país que resiste a se unir a uma aliança proposta pela ONU) aparentemente liberta do Genocyber. Não há mais explicações sobre isso e nem o porquê de ela estar neste país. O fato é que tanto ela quanto outras crianças aparecem fugindo de helicópteros nesse território. E, exceto por ela, as demais são brutalmente massacradas, o que faz com que ela se revolte, transforme-se novamente em Genocyber e destrua os helicópteros. Após a carnificina, ela se encontra fragilizada e de volta ao seu estado natural. Elaine, então, é resgatada pela tripulação do navio e conta com os cuidados de uma médica que perdeu sua filha recentemente em um desastre aéreo. A garota acaba despertando seu instinto materno e ela faz de tudo para protegê-la. Elaine descobre que há um grupo de cientistas dentro do navio trabalhando em um experimento similar ao Genocyber, um humanoide que sai totalmente fora de controle e é responsável por uma verdadeira chacina, aniquilando a tripulação (exceto por Elaine e pela doutora) em cenas perturbadoras e extremamente gráficas. Mais uma vez, Elaine se transforma no Genocyber e entra em um violento confronto com a outra criatura.
Há um salto temporal e, assim, no começo do quarto OVA, descobrimos que o Genocyber foi responsável por uma guerra que perdurou por cem anos na qual todas as nações tentaram, sem sucesso, destruí-lo. Como consequência, o Genocyber acabou por devastar praticamente toda a civilização até ser finalmente derrotado no século XXIV. Avançamos para o início do século XXV, em Ark de Grande, uma das cidades remanescentes que resiste como última opção para o que sobrou da humanidade. No entanto, ela vive sob um rigoroso regime ditatorial. Nesse cenário surge Mel, uma garota com poderes paranormais, e seu namorado Ryu. Em busca de dinheiro para realizar uma cirurgia que restaure a visão de Mel, ambos trabalham nas ruas, utilizando os poderes sensitivos da garota. Ryu acaba se envolvendo em problemas com a polícia e ambos fogem para as ruínas no subterrâneo da cidade. Lá, Mel se depara com uma seita que costuma adorar o Genocyber como a um deus, aguardando pacientemente por seu retorno, uma vez que ele se encontra em estado de animação suspensa por lá. Ao resgatarem Mel, enquanto Ryu é capturado pela polícia, os membros da seita passam a crer que ela é uma mensageira de Deus. Não demora até que as ruínas subterrâneas sejam invadidas por um esquadrão da morte em mais cenas gratuitas de carnificina, o Genocyber desperte e Mel (que está grávida de Ryu) acabe por se fundir a ele. Ao final, após um novo extermínio, Mel e Ryu são os únicos sobreviventes. Ela recupera a visão e se ouve um choro de bebê, como o simbolismo clichê de esperança.
Pelos parágrafos gastos até aqui, pode-se até pensar que Genocyber tem um super enredo. Mas não tem. O fiapo de história existente poderia originar um plot original e bacana. Contudo, diretor e roteiristas preteriram o roteiro em ordem de privilegiar o gore. A violência não serve à narrativa. A narrativa é que serve à violência. Em suma, Genocyber é isso: uma história mínima, um plot risível, que existe apenas em função da violência gráfica, extrema e gratuita.
Em termos visuais, a qualidade da animação, para a época, pode ser considerada um primor. Apesar dos movimentos equivocados (ou da falta de movimento) dos personagens, há uma ênfase na riqueza dos detalhes e o desenho de produção, especialmente no que se refere às criaturas robóticas, é bem competente. Também há uma precisão digna de nota em representar uma atmosfera pós-apocalíptica, construindo um cenário legitimamente cyberpunk.
A montagem é acelerada demais, tornando a trama confusa e sem pausa para respiro. Por outro lado, é condizente com a atmosfera de tensão psicológica recorrente. O enredo é usado como justificativa para um banho de sangue, tripas, vísceras, membros decepados, olhos que saltam para fora das órbitas e cabeças rolando.
É necessário ter estômago.
A carnificina é constante, resultando em cenas altamente perturbadoras e, em sua maioria, bizarras. O teor violento da obra é tão especificamente representado que soa espalhafatoso. As cores e luzes em profusão só corroboram o clima psicodélico fazendo com que o anime peque não só pela falta de enredo, como pelo excesso visual.
Genocyber alia o terror à distopia, mas a trama não é bem fundamentada, nem os personagens são satisfatoriamente desenvolvidos. Aqui e ali a gente percebe que se fosse mais bem explorado, trabalhando, desenvolvido e aprofundado, poderia render uma produção legal que retratasse até onde pode ir a ambição do homem e sua sede infundada por poder e guerra. Mas é puro massacre para impactar e causar controvérsia. Uma pena.
No entanto, é necessário admitir que os episódios 4 e 5, centrados na trama de Mel e Ryu no Ark de Grand, não são tão ruins, até mesmo apresentam uma narrativa coerente e modestamente desenvolvida, além de um ritmo mais fluido e personagens pelos quais nos importamos. Este arco segue uma linha mais dramática e menos gore. E é quando percebemos que o conceito da série é interessante. Uma pena os três primeiros OVAs serem tão rasos.
E como nem tudo é perdido, a trilha sonora é fantástica especialmente o score. E, ainda que o tema Fairy Dreamin’ destoe totalmente da animação – não condizendo com a atmosfera excessivamente brutal – a canção é inegavelmente linda.
Como dito anteriormente, Genocyber causou controvérsia na época de seu lançamento devido à violência explícita, altamente gráfica, porém, banal. E até hoje é visto com maus olhos por muita gente, despertando a fúria de quem vai assistir pela curiosidade, mas sem o menor conhecimento do que se trata – o que acaba por originar textões nas redes sociais salientando o quanto a obra é nociva (*boceja*).
Para quem curte a ideia de um terror cyberpunk e não se importa muito com o enredo, ótimo. Do contrário… Genocyber é muito barulho por nada.
Andrizy Bento