A construção psicológica do protagonista, Lee Chandler, somada à interpretação precisa de Casey Affleck é certamente o maior trunfo de Manchester by the Sea. Amparado por excelentes coadjuvantes e a deslumbrante fotografia a cargo de Jody Lee Lipes, um dos principais concorrentes ao Oscar 2017 é um excelente estudo da dor de um personagem comum, imerso no silêncio de quem pensa ser totalmente inútil verbalizar seu sofrimento. O longa de Kenneth Lonergan versa aceca das transformações que a tragédia, a angústia, a perda e a morte operam na vida de uma pessoa.
Evitando o caminho fácil do melodrama ou das típicas histórias de superação que costumam dominar os cinemas nesta época do ano, o longa é centrado em Lee Chandler, aparentemente um pacato e solitário zelador em Boston, que se vê obrigado a retornar à cidade litorânea onde outrora construiu uma vida e uma família, ao tomar conhecimento da morte do irmão. Por meio de flashbacks que invadem a tela sem prévio aviso e sem medo de sobrepor cenas de fases distintas do personagem (surpreendentemente, jamais desorientando o espectador), conhecemos a origem da melancolia do protagonista. Aliás, interessante uso de um recurso exaurido como o flashback, sem excessos e inserido de modo orgânico na narrativa.
O irmão de Lee, Joe (Kyle Chandler), é apresentado como o pilar que o ajudou a se sustentar no momento mais difícil de sua vida, mas jamais é retratado como o flawless hero, a figura admirável, o ídolo de Lee. O mérito de Manchester é mostrar figuras humanas, pessoas comuns com as quais é possível se identificar.
Ao regressar à pequena cidade situada em Massachusetts, Lee se depara com uma difícil missão: além de ser inevitável confrontar o passado, segundo o testamento de Joe, cabe a ele a responsabilidade de cuidar do sobrinho Patrick (Lucas Hedges), até que este atinja a maioridade.
O garoto surpreende. Ele age como qualquer menino de sua idade, mas que tenta a todo custo omitir a dor causada pela perda do pai sendo proativo (ele tem uma vida social agitada, possui várias namoradas, uma banda, joga hóquei e basquete). Quando, finalmente, a angústia quebra sua resistência, Patrick surta e protagoniza uma das melhores e mais interessantes cenas de Manchester by the Sea.
Mas é Casey Affleck que realmente toma a tela toda para si. Um sujeito que nunca, de fato, superou a dor e a tragédia de perder os filhos, e nem mesmo é o que ele deseja. Todavia, não se abre com ninguém acerca disso, procurando isolar-se de todos e manter seu desespero e consternação em silêncio. A sua dor é retratada no modo como ele age – se envolvendo em brigas gratuitas no bar, lançando frases inconvenientes, sendo por vezes passivo-agressivo e intolerante com o sobrinho e com os demais à sua volta e evitando travar contato com quem quer que seja. Repare como ele sempre veta qualquer tentativa de mulheres se aproximarem e se relacionarem com ele. Quando sua ex-esposa, Randi (Michelle Williams, impressionante) tenta se desculpar, ele parece repelir seu pedido de perdão. Lee prefere conviver com a dor, com o ressentimento, com a culpa de ter destruído – ainda que acidentalmente – sua família, pois é isso que move sua vida; a dor é tudo o que ele tem, é tudo o que lhe resta, é o que define seus passos, seu caminho, sua vida.
Mesmo com o sobrinho, Lee é frio e distante. De qualquer forma, aos poucos, é possível notar que há mais semelhanças entre eles do que julgamos aparentemente. É quando o filme pinta na tela a força dos laços familiares. Contraditoriamente, é o mais velho que quer abandonar suas raízes pelas lembranças que o lugar lhe traz, e o jovem que quer permanecer, pois é lá que ele está planejando e estabelecendo sua trajetória. A relação de ambos os personagens com o barco (herança deixada por Joe) é uma das metáforas mais tocantes do longa, provida de uma nostalgia singela, soando como um último vínculo de Lee com o irmão, de Patrick com o pai falecido e dos dois com uma vida que deixaram para trás.
E tudo é belamente filmado. Como se não bastasse as belas paisagens e o clima solitário proporcionados pela cidadezinha litorânea povoada por cinco mil habitantes, o texto ainda é legitimado pela trilha sonora de Lesley Barber. A elegante e devastadora partitura ilustra sonoramente todo o conflito interno que o protagonista atravessa.
Sutil e profundo no texto e na direção de Lonergan e na interpretação de Affleck (forte candidato a melhor ator no Oscar deste ano), Manchester by the Sea é tão maravilhoso de se ver quanto complexo de se digerir. Dilacerante e delicado. Um dos dramas mais impactantes e primorosos dos últimos tempos.
★★★★★
Andrizy Bento
Uma consideração sobre “Manchester by the Sea”