A Chegada

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Stanley Kubrick costumava dizer que um filme deveria se aproximar mais da música do que da ficção. E ele não poderia estar mais certo. A música não se limita a uma narrativa convencional, isto é, não conta uma simples historinha. Ela é composta de versos, rimados ou não, metricamente dispostos de forma que soem harmônicos quando combinados à melodia. No final, a música faz sentido. Mesmo que as frases, quando não cantadas, pareçam desconexas e dispersas. Ao ler os versos, desprovidos do compasso, sempre há a impressão de que falta algo. Mas quando a letra está aliada aos acordes da guitarra, violão, piano ou qualquer outro instrumento, ela vai representar uma emoção distinta para cada uma das pessoas que a ouvir, dependendo da sensibilidade e da experiência de cada um.

O cinema também é um conjunto de elementos que devem buscar harmonia a fim de que um filme funcione. Um filme não é uma simples história, não se restringe ao roteiro. O roteiro é uma parte significante. Mas a fotografia, a montagem, a sonoplastia, o figurino/maquiagem e a direção, devem estar em sintonia para que a narrativa possa fluir.

Não sei dizer se o franco-canadense Denis Villeneuve tem conhecimento da frase de autoria de Kubrick (embora ele seja fã confesso do homem por trás de 2001: Uma Odisséia no Espaço), mas, pelo sim ou pelo não, o fato é que o cineasta seguiu à risca a filosofia do mestre. Isso por ser daqueles artesãos que realmente compreendem a essência do grande ecrã; qual é a força motriz da sétima arte. E é por isso que em A Chegada, todos os recursos narrativos e visuais são trabalhados com sabedoria e primor, apresentando uma harmonia sem igual.

A trama é centrada na linguista Louise Banks (Amy Adams), convocada por militares para traduzir e interpretar a linguagem e os sinais de seres alienígenas que aportaram na Terra, em diversos pontos do planeta. A fim de descobrir se eles representam uma ameaça, Louise vai se aproximando cada vez mais dos seres extraterrenos, estabelecendo uma comunicação com estes, e acabando por desvendar mistérios intrínsecos à humanidade e sua própria existência.

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Villeneuve alcança um ponto de equilíbrio entre uma trama intimista e uma mensagem universal, mostrando que por mais que o mundo esteja polarizado – devido às distinções históricas, sociais, políticas, culturais, além da divergência de opiniões que torna quase impossível as pessoas se entenderem (muito mais do que pela simples questão idiomática e dialética) – a comunicação é a base de tudo. O mais interessante é que, a princípio, não era a intenção do cineasta fazer de seu longa um manifesto político. E por mais que o filme represente muito mais do que isso (o pressuposto metafísico é o que se sobressai), é inegável sua preocupação social e seus contornos ideológicos, tendo em vista a dificuldade de comunicação na atualidade, mesmo diante dos avanços dos aplicativos e redes sociais.

Mesmo apostando em uma estética mais sóbria e até minimalista para um filme desse porte, o visual não deixa de ter seu esplendor. De qualquer forma, o longa acerta ao não investir demasiadamente no uso de efeitos especiais e pirotecnia. Não há realmente essa necessidade para validar o longa como um sci-fi. As discussões que a narrativa apresenta são o suficiente para isso.

Outro item que se destaca é a sonoplastia. Tanto os efeitos sonoros quanto a música criam um clima aterrador, conferindo um tom de suspense exato à narrativa, ajudando a estimular a expectativa do público. A trilha sonora é um achado, combinando drama, emotividade e um tom perturbador que fazem da partitura algo arrepiante.

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Mas a montagem é, sem dúvida, o que mais impressiona na obra. A edição se adequa precisamente à proposta da narrativa. À medida que as peças vão se encaixando, os elementos se conectando, acabamos por desvendar o principal mistério da história e somos golpeados por um plot twist de fazer inveja a M. Night Shyamalan. O longa não aposta em linearidade. Todo o sentido da história está em simbologias, vocábulos simples ditos e repetidos ao longo da trama e, principalmente, na não-linearidade dos eventos. E não seguir uma continuidade lógica é a peça-chave do filme. Aqui, não é o caso de linhas temporais que se entrecruzam. O tempo é representado como algo não determinista, não definitivo, não calculado e medido por ponteiros. E, sim, como se fosse maleável e manipulável. Como se fosse possível viajar através dele, de um momento para o outro, indo e voltando,, avançando e recuando, conferindo seu passado e seu futuro, observando suas escolhas e, por mais dolorosos que sejam os caminhos a que elas nos levam, optemos por abraçá-las de qualquer maneira.

E é por isso que todo o progresso na comunicação com os seres alienígenas soa plausível. Porque é como se espectador e personagens estivessem em sintonia, aos poucos absorvendo a linguagem, os símbolos, a razão e essência dos termos, divagando sobre a existência complexa e, ao mesmo tempo, simples até mesmo dos palíndromos. A Chegada filosofa sobre tempo, ciência, linguagem e humanidade, sempre de maneira honesta, em uma narrativa inteligente e sensível que aborda seus temas com uma incomparável sutilieza e naturalidade.

Não é à toa que o voice-over de Adams, que abre o filme, seja tão significativo. Ou quando Ian Donelly (Jeremy Renner) lê um prefácio escrito por Louise sobre a linguagem ser o alicerce da civilização e retifica que, na verdade, é a ciência. O próprio modo como se desenvolve a relação entre Ian e Louise diz muito sobre a história que o longa quer contar. Ian é um matemático e cientista que surge analisando a situação por um ângulo diferente do de Louise. No entanto, suas visões opostas de universo, acabam por se mostrar complementares. Na representação de seus personagens e na evolução do relacionamento entre eles, vamos compreendendo os meandros da trama e o objetivo final da obra de Villeneuve.

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Claro que nem tudo é perfeito. Ainda incomoda o clichê hollywoodiano maniqueísta, sustentando no decorrer das décadas, de retratar os Estados Unidos sempre com aquela postura diplomática e assumindo a liderança, enquanto outras nações como China e Rússia (tipicamente representadas como mais virulentas), ameaçam partir para a ofensiva. Infelizmente, eis um chavão narrativo que, para os USA, não dá sinais de desgaste.

Ainda assim, não tira os méritos da produção. Houve um acuro tão grande e notável na composição do texto e na execução deste nas telas que designa A Chegada como uma obra impactante, profunda e magnífica que, certamente, merece entrar no panteão das obras-primas cinematográficas e ter o privilégio de estar ao lado de 2001. Além de Kubrick, o filme carrega alguns ecos Malickianos e até mesmo Lynchianos (a sequência do sonho de Louise com o alienígena remete imediatamente a David Lynch). Mas não há necessidade de comparações. Villeneuve constrói sua narrativa com muito estilo, sem didatismos e exposições, não vendo nenhuma necessidade de guiar o espectador pela mão como Christopher Nolan fez em Interstellar. A mensagem de enaltecer a comunicação como o elo que pode nos aproximar ou destruir (seja como indivíduos ou nação), e a maneira como foi trabalhada, lhe garante um lugar especial, e com honra, na esfera dos grandes filmes da história.

★★★★½

Andrizy Bento

7 comentários em “A Chegada”

  1. Mesmo que, em alguma realidade alternativa absurda, eu não quisesse ver A Chegada, só em ler seu artigo, eu me sinto compelida a ir ao cinema a-go-ra. Sua visão privilegiada como crítica E espectadora, passional e, a despeito disso, imparcial deixa uma impressão única. Eu conheço você há muitos anos, e sei do que você é capaz, mas *sacode a cabeça* você se superou. Brigadu, lindona! Cheirinhos da titia!

    1. Olha só, que linda! *-*
      Que bom te ver por aqui 🙂 confesso que só no final do comentário é que fui descobrir quem era a autora.
      Muito obrigada, titia! O tempo passa e o meu carinho por você não diminui. Agradeço por sempre me incentivar. Bjos ❤

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