Mais do que um filme interessante, Elle é um filme necessário, ainda mais nestes tempos em que se é tão debatida a questão do ativismo feminista e da cultura do machismo. Mas o filme não se manifesta como denúncia, nem como apologia ao sexismo tão presente em nossa sociedade. Acima de tudo, Elle se propõe a discutir e apresentar as várias camadas que compõem esse panorama. Nada é unilateral.
O longa narra a história de Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), uma mulher sofisticada e renomada empresária da indústria de videogames (considerado um ramo predominantemente masculino) e que conduz seus funcionários com mão de ferro. Ela tem uma vida pessoal bastante turbulenta, repleta de conflitos familiares. Entra em atrito com a mãe que se envolve com um gigolô típico; com o filho que se deixa manipular e ludibriar pela namorada; vive um caso extraconjugal com o marido da melhor amiga; e possui uma relação mal resolvida com o ex-marido – sentindo, inclusive, um inexplicável ciúme da nova namorada dele, mais jovem e com um estilo totalmente diferente do seu. Ela é rude com todos eles, usando uma máscara de descaso quando, na verdade, se importa além do que deveria.
Para completar, ela tem um passado conturbado envolvendo o pai, um serial killer. Bem-sucedida na vida, Michèle parece ostentar esse verniz de arrogância, independência e autossuficiência, além do jeito teatral (como se planejasse cada cena de sua vida) para disfarçar e omitir seu background trágico e as inseguranças e traumas inerentes a isso. Afinal, o caso de seu pai ficou bastante conhecido, ainda sendo veiculado exaustivamente pelas emissoras de televisão locais. Na época, Michèle era apenas uma criança.
Tudo isso já era material suficiente para pintar na tela um retrato de uma personagem fascinante e repelente, instigante e assombrosa, com diversas nuances, construindo, desse modo, uma trama intimista e universal. Porém, o gatilho disparado pelo diretor, Paul Verhoeven, é o estupro da protagonista. E é assim que ele abre seu filme. Ouvimos o barulho, os ruídos, os gritos desesperados e vemos um gato enojado, desviando o olhar e dando as costas ao presenciar a cena, julgando desprezível aquele ato humano. Uma cena magistral.
A sequência do estupro é, por diversas vezes, remontada, reencenada, repetida ao longo do filme. O objetivo parece ser o de esmiuçar, analisá-la por diferentes perspectivas, de forma a mostrar a busca da personagem pela identidade do agressor. Mas ela não almeja vingança. Pelo contrário. O estupro desperta na personagem uma reação totalmente inesperada pelo espectador. Algo incomum de se esperar de uma mulher vítima de violência física e psicológica (o agressor é, também, bastante teatral). Ao invés de trauma, o abuso desperta nela um desejo infundado.
Verhoeven é um cineasta que não se limita a uma estrutura narrativa clássica, uma trama convencional. Mesmo o flashback, um recurso tão manjado e exaurido, é utilizado de forma interessante e equilibrada neste filme. Ele subverte o conceito da trajetória clássica da heroína que veste a carapuça de justiceira, e o jogo de gato e rato típico, fazendo paralelos da situação vivida por Michèle com o jogo de videogame que a empresa que ela comanda está produzindo. O sexo não consensual e violento desperta nela uma resposta inflamada de anseio e paixão, como se ela quisesse se punir pelo que é e pelo seu próprio background. Como se a personagem fosse empática e receptiva à violência em ordem de resolver o conflito que tem consigo mesma e com sua origem.
E não dava para se esperar menos do cineasta por trás de Robocop, filme que revolucionou o cinema de ação pelos idos da década de 1980 e, também, responsável por Showgirls, o maior fracasso de sua carreira e que se tornou um clássico trash, um expoente do cinema framboesa (em alusão ao prêmio entregue aos piores filmes do ano). Afinal, Verhoeven é daqueles caras que se é para fazer algo bom ou ruim, que seja para entrar para a história. Dessa vez, ele retorna às suas raízes, ao cinema europeu (onde começou sua trajetória como cineasta, antes de ir para Hollywood) e compõe uma das obras mais emblemáticas de 2016.
A atmosfera constante e crescente de suspense dá vazão ao desastre anunciado, compondo um thriller erótico/psicológico que se destaca pela agilidade e refinamento do texto. O longa é graficamente pesado, mas o roteiro, com seus diálogos inteligentes temperados de um humor negro – inserido de maneira bem sutil – traz uma leveza incomparável à trama.
Obviamente, não tem como não mencionar a performance de Isabelle Huppert, já altamente premiada nesta temporada. A intérprete perfeita para a protagonista, Isabelle toma conta da tela e tem um domínio da situação mesmo quando esta ameaça lhe fugir ao controle. Um dos desempenhos mais inspirados e (merecidamente) badalados do ano.
Ao final, quando as vidas vão sendo reconstruídas de maneira frágil, é uma relação de amizade que predomina. Michèle e a melhor amiga caminham pelo cemitério por entre os restos mortais, como se tudo que restasse fosse apenas cinzas. Como se seu relacionamento de cumplicidade no trabalho e na vida superasse todo o resto: a história mal resolvida com a mãe e o pai, os conflitos com o filho, o desprezo pelo ex-marido e pelo amante, os abusos de seu agressor.
Elle é, sem dúvida, um dos melhores filmes deste ano que já vai tarde.
★★★★★
Andrizy Bento
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