Discussões sobre a vida e a morte, pessimismo e otimismo, a fragilidade da substância humana e conflitos interiores que assaltam personagens desajustados no topo de arranha-céus, já haviam sido temas trabalhados pelo cineasta alemão Wim Wenders no belíssimo Asas do Desejo (1987). Essas pautas se repetem em outro título – menos alardeado – da filmografia do diretor, mas com um viés bem distinto. Em 2000, Wenders decidiu filmar um longa baseado em argumento de Bono Vox, o frontman da banda irlandesa U2. Aliás, a banda também é responsável pela sensível trilha sonora que reflete bem essência da trama.
E, falando em trama, o longa acompanha a investigação da misteriosa morte do filho de um bilionário que teria, supostamente, se jogado do alto do decadente hotel no qual residia e que dá título ao filme. O agente federal Skinner (Mel Gibson) é contratado para investigar se sua morte se trata realmente de suicídio ou assassinato. O Hotel de Um Milhão de Dólares – um projeto de hotel abandonado – abriga doentes mentais e dependentes químicos, todos suspeitos do suposto homicídio. Dentre os habitantes do excêntrico local, está Tom Tom (performance inspirada de Jeremy Davies), o melhor amigo do suposto suicida e que nutre uma paixão ingênua e até lúdica por Eloise (Milla Jovovich). Aos poucos, conforme a narrativa avança, as peças vão se encaixando neste anticonvencional whodunit.
O longa abre com uma das sequências mais belas de que se tem notícia, conseguindo transformar uma cena trágica de suicídio em algo poético e belo, sem, no entanto, romantizar o ato. A poesia contida nos frames objetiva fazer com que o espectador reflita sobre a vida e o quão frágil e simples ela é. O que só é acentuado pelo quote sensacional que coroa a sequência, logo após o personagem saltar do topo do edifício.
“Uau, depois de pular me ocorreu que a vida é perfeita. A vida é a melhor. É cheia de mágica, beleza, oportunidade… e televisão. E surpresas. Muitas surpresas, sim. E então, tem as coisas pelas quais todos anseiam, mas só sentem verdadeiramente quando se vão. Tudo isso meio que me acertou em cheio. Eu acho que você não vê tudo isso claramente quando está, sabe, vivo…”
A direção de fotografia faz um trabalho magnífico ao explorar o ambiente decadente do hotel e toda a sua estrutura defasada. Ao mesmo tempo confere um tom elegante ao longa ao concentrar-se nas alturas. As tomadas aéreas e a câmera constantemente focada nas janelas (seja de dentro para fora ou de fora para dentro) compõem planos inspiradíssimos e que são condizentes com a proposta narrativa do longa, afinal os personagens parecem viver suspensos em um mundo onírico, voando alto em suas próprias ilusões e delírios, negando-se a firmar os pés no chão. Eles soam alheios ao que acontece lá fora – lá embaixo, mais propriamente dizendo. São seres humanos miseráveis, mais felizes em sua miséria.
O espectador assume a condição de voyeur, invadindo os apartamentos dos personagens através das janelas. O universo delineado na tela por Wenders a partir da ideia de Bono Vox, é tão fascinante quanto bizarro. É sintomática a obsessão por televisão retratada no filme. A televisão é fake, trata-se de um amontoado de mentiras, está distante da realidade. A fixação pela telinha da TV é um meio de escapar. A realidade é algo em que os excêntricos personagens se recusam a viver. A vida só parece valer a pena quando não se segue regras, quando se deixa de ser normal e de buscar aceitação, de querer se encaixar. Esse universo de delírio é retratado de maneira apaixonante, especialmente na figura do protagonista Tom Tom. Wenders inunda a tela com visuais esplêndidos e cativa o espectador com figuras tão caricatas quanto humanas.
O Hotel de Um Milhão de Dólares é uma crônica do cotidiano urbano. Combina a sátira do noir (o truculento, almofadinha e unidimensional agente Skinner parece ter saltado de uma típica produção do gênero diretamente para este filme) com uma excitante trama investigativa e um romance sensível e pouco convencional (onde não há manifestação física de desejo, apenas um sentimento de origem não-terrena, sublime e celeste), pontuado pelos arranjos maravilhosos dos temas musicais compostos pela banda U2.
Sombrio, mas otimista e, infortunadamente, um dos títulos mais subestimados da filmografia de Wenders, Hotel é uma coleção de frames lindos, ângulos peculiares que causam estranheza e, ao mesmo tempo, imprimem elegância, e personagens tão malucos quanto memoráveis.
Exatamente o mesmo amor, diferentes resultados.
Andrizy Bento