Rever este célebre filme de Brian De Palma no cinema, graças ao projeto Clássicos Cinemark, me fez exclamar, ainda que silenciosa-mente, em pensamento, uma frase que tanto reluto dizer em voz alta e com a qual eu realmente não concordo (ou achava que não concordava): Não se faz mais cinema como antigamente. A verdade é que eu sou uma detratora deste conceito atual de que a televisão está bem melhor do que o cinema, produzindo excelentes seriados. Concordo com a parte de que as produções televisivas tem sido excelentes. Mas há, sim, muita coisa boa em termos de cinema. Contudo, um clássico à altura de Os Intocáveis? Primoroso em aspectos técnicos e narrativos? Realmente, há muito que não vejo um filme assim…
O longa narra a guerra de um grupo de incorruptíveis policiais contra uma quadrilha de gângsters liderada por Al Capone (Robert De Niro), responsável por instaurar o caos e o crime em uma soturna Chicago da década de 1930, na qual vigora a lei seca. O filme já abre com uma sequência impactante, que mostra a morte de uma garotinha de dez anos, uma das vítimas de um violento atentado à bomba ordenado por Al Capone e executado pelos seus capangas.
Os personagens são todos perfeitamente trabalhados e interpretados. Kevin Costner confere a dignidade exata ao seu agente federal Eliot Ness, mesmo quando precisa extrapolar os limites da lei. Um homem de caráter, íntegro, honrado, mas cuja última linha de diálogo nos faz questionar um pouco toda sua boa conduta. Sean Connery é brilhante na pele do veterano e experiente policial Jim Malone. O sotaque de Andy Garcia, que interpreta o novato Giuseppe Petri, é simplesmente genial. E Oscar Wallace, grande Oscar, é defendido de maneira justa e competente por Charles Martin Smith que evita sabiamente cair na caricatura, mesmo interpretando o contador atrapalhado, tendo um papel fundamental na trama, com direito ao seu momento de herói improvável (cena cujo desfecho é divertidíssimo).
Os quatro possuem uma química certeira e inigualável e esse clima de bromance também tem sua parcela de responsabilidade em tornar o filme funcional. Com diálogos simples e sutis, o roteiro humaniza os personagens, salientando que, para eles, a família e a amizade não apenas devem ser preservadas, como devem vir em primeiro lugar. E é por isso que eles querem avidamente combater o gângster de alto escalão que comanda Chicago, lugar em que ninguém em sã consciência gostaria de viver estando à mercê de tantos perigos. O que originalmente impulsiona o protagonista a derrubar Al Capone é o pedido da mãe da garotinha morta no atentado. A partir da breve conversa que Elliot tem com ela no departamento de polícia, torna-se uma questão de honra derrotar Al Capone.
E, por falar nele, Robert De Niro acerta em cheio com seu antagonista, sempre com um ar ponderado, calculista e vilanesco sem soar histriônico ou superficial.
A fotografia elegante, algo tão característico dos filmes de De Palma, confere um ambiente soturno e uma atmosfera noir à trama. A câmera inquieta e seus movimentos precisos e inteligen-tes resultam em planos de um acuro visual indiscutível que parecem conduzir a trama e o espectador à catarse. Sobretudo destacam-se a criação de planos-sequência antológicos e a acertada câmera subjetiva na cena do assassinato de Malone em seu apartamento. O frequente uso do plongée e contra-plongée (ângulo alto e baixo) não é gratuito e confere uma imponência aos personagens que não poderia condizer melhor com a narrativa.
Uma cena menos comentada, mas que merece a menção, é a que mostra os quatro heróis à mesa, discutindo, fumando e bebendo. O travelling combinado à conversa trivial entre os personagens traz um ar de leveza e descontração àquela reunião de fim de noite que faz com que o espectador se afeiçoe e se importe com eles. E essa brincadeira com a emoção do espectador e seu consequente e inevitável apego ao bromance, corrobora a imersão na trama; a interação do público que passa a torcer com ainda mais afinco pelos heróis após as baixas no grupo de policiais reunido por Elliot. Mas não dá para falar deste filme sem mencionar a bela sequência da estação de trem que faz referência explícita a O Encouraçado Potemkin (1925) – a clássica cena do carrinho de bebê na escadaria – angustiante na medida certa e um excelente exercício de tensão . A composição das sequências, mesmo que pareça milimetricamente calculada por De Palma, é o que torna este longa tão memorável.
É digna de nota a precisão artística ao retratar àquela época, com figurinos e cenografia que ambientam os personagens devidamente no submundo de Chicago da década de 1930. A paleta de cores utilizada (optando-se constantemente pela dessaturação, com alguns poucos matizes mais vivos) é outro item de vital importância para o longa, tornando mais do que bem-sucedida a intenção do diretor em fazer um típico exemplar do estilo que a antiga Hollywood mais celebrava: os filmes de gângster. O desenho de produção acerta em cheio ao evocar a atmosfera dos antigos clássicos do gênero.
Para completar a trilha sonora, a cargo de Ennio Morricone (indicada ao Oscar em 1988), é fantástica, adicionando uma onda crescente de suspense e produzindo o impacto necessário no espectador em momentos bem pontuados, como na sequência do julgamento que enaltece a figura do herói.
Com uma direção cuidadosa e inspirada, uma montagem dinâmi-ca que torna o ritmo do filme sempre agradável e envolvente, e uma condução magistral da narrativa, Os Intocáveis trata-se de um clássico atemporal, daqueles filmes que devem sempre ser vistos e revistos. É um deleite cinematográfico, uma verdadeira aula de como se fazer cinema, um filmaço de Brian De Palma.
Andrizy Bento