Que Horas Ela Volta?

Nas mãos de outro diretor menos competente, Que Horas Ela Volta? poderia se converter facilmente em um melodrama pautado pela teledramaturgia nacional, repleto de estereótipos e  com uma trama no melhor estilo conto de fadas moderno. Porém, sob a regência de Anna Muylaert (que também assinou o surpreendente Durval Discos de 2002), a trama ganha contornos de crítica social, uma crônica reflexiva que traça sutil e habilmente o retrato da sociedade atual; discutindo, sem partir para nenhum confronto ideológico, a questão da distinção de classes. Não há nada de político, nem de filosófico. O tom é intimista e de embate entre idealismo e conformismo.

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É particularmente brilhante a forma como os personagens são desenhados na tela. Regina Casé, em excelente momento dramático, interpreta a empregada doméstica Val que se mudou de Pernambuco para São Paulo com a intenção de oferecer melhor qualidade de vida para sua filha, Jéssica (Camila Márdila). Um tanto relutante, mas sem ter outra escolha, acabou tendo que deixar a menina no interior para se dedicar integralmente ao trabalho de babá de Fabinho (Michel Joelsas). Seus patrões, Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles), os pais do menino, costumam dizer que Val é da família, porém, ela dorme em um quartinho nos fundos da casa e só pode se alimentar na cozinha, nunca na mesa com seus patrões. Era fácil deslizar e cair na caricatura, mas Regina evita o estereótipo e abraça sua personagem entregando uma atuação irretocável, conferindo uma ingenuidade cativante e uma doçura ímpar à sua Val.

Casé é a grande estrela do filme, mas o restante do elenco é igualmente interessante, além de afinado. O garoto, Fabinho, sempre viu Val como sua mãe – diante da constante ausência da verdadeira. Já adolescente, prestes a se tornar um universitário, ainda recorre a ela e vai dormir ao seu lado no quartinho dos fundos quando perde o sono em seu arrojado quarto. O papel de Mutarelli, o pai do garoto, causa certa estranheza no espectador e é difícil sondar quais são suas reais intenções. Carlos é um indie de meia-idade que vive da fortuna de sua família e nunca precisou arregaçar as mangas de fato, já tendo desistido de um sonho por conta da bajulação que quase elevou seu ego. Bárbara é uma mulher fútil e que carrega consigo um inegável complexo de superioridade, mas Karine Teles também evita se render ao arquétipo da madame vilã de telenovela e torna sua personagem crível. Como as típicas famílias modernas, eles trocam a boa e velha conversa durante o jantar por ficarem compenetrados em seus respectivos celulares.

Jessica, a filha de Val, surge nesse cenário de família rica e moderna, abalando as estruturas da casa. Ela é o ponto de ruptura, pois não tem a mesma simplicidade da mãe, indo contra as expectativas da família, especialmente de Bárbara. A jovem é idealista, cheia de aspirações, inteligente e bastante segura de si. E, claro, não aceita ser tratada como inferior. Ao contrário de Fabinho, que vê a empregada como mãe, Jessica está há mais de uma década sem vê-la e a trata pelo nome. Não há como condenar a conduta da garota ou encarar como puro atrevimento. Em um ambiente em que ainda prevalece a segregação social (na figura da mãe de Fabinho)  surge o questionamento se Jessica é ambiciosa ou apenas quer ser tratada como ser humano, e não como diferente por conta de sua origem humilde e situação financeira.

A valorização da arquitetura da casa condiz bastante com as aspirações da filha de Val que planeja estudar arquitetura e urbanismo em uma das universidades mais concorridas de São Paulo, o mesmo curso que Fabinho pretende cursar. Jessica é bem recebida na casa pelo garoto e seu pai, porém Barbara não vê a menina com bons olhos. Primeiro, não consegue aceitar o fato de que ela quer fazer o mesmo curso que seu filho e ainda mais na mesma universidade. Depois, pela atenção que os homens de sua vida costumam dispensar à intrusa, tão diferente de sua submissa e simplória mãe.

O texto afiado dá vazão e propósito a uma temática já tão trabalhada em época de guerras virtuais entre esquerda direita (ou, como dizem por aí, entre caviar coxinhas). A linguagem e a maneira como a cineasta aborda o assunto jamais soam demagógicas. Nestes tempos em que Danuza Leão afirma com veemência que não quer encontrar seu porteiro em Paris (se posicionando contra ascensão social de pessoas outrora economicamente inferiores a ela) não espanta que Bárbara fique estarrecida diante da notícia de que a filha da empregada passou no vestibular e seu filho não. Ou que, depois que Jéssica entra em sua piscina, ainda que impulsionada por Fabinho e seu amigo, a patroa de Val mande esvaziá-la, alegando que viu um rato na água.

Sabemos a que rato ela está se referindo…

A arte da mise-en-scène

Os diálogos e personagens constituem a força motriz do longa, mas Que Horas Ela Volta? não deixa de impressionar em termos estéticos. Os longos planos estáticos, os personagens fora de quadro, a câmera capturando frequentemente as costas dos personagens dão um ar voyeurista, como se a câmera estivesse escondida em algum canto da casa e nós estivéssemos assistindo àquela realidade de uma maneira quase intrusiva.

Os detalhes é que dão vida à trama. Da imponência da mansão, passando pela piscina até um simples pote de sorvete, todos os elementos postos em cena colaboram na construção da narrativa,  tão intimista quanto inteligente.

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O longa, repleto de simbologias, tem algumas das sequências mais belas e emblemáticas do ano. Quase todas protagonizadas por Casé. Destaque para a cena em que ela liga para dar boa noite à sua filha diretamente de dentro da piscina dos patrões, algo impensável antes do retorno de Jessica à sua vida. Mesmo cuidando de Fabinho desde pequeno e e este pedindo a Val para que nadasse junto com ele, a resposta era sempre a mesma: Eu não tenho maiô. Chega a um ponto em que Jessica questiona, de modo irônico, se a mãe segue algum manual de instruções que afirma que ela não pode comer fora da cozinha, ou tomar o mesmo sorvete que os patrões, ou que jamais pode sequer pensar em entrar na piscina deles. E, quando ela finalmente entra (após a notícia de que a filha passou no vestibular), traz uma leveza inigualável à trama e uma sensação de libertação à personagem. O confronto com sua filha a faz repensar toda sua conduta de obediência e submissão na casa, se arriscar e voltar a ter algum sonho.

Consagração em festivais

Ótimo ver um longa abordar a realidade e a desigualdade social sem partir para inflamados discursos ideológicos, parcialidade ou fatalismos. E, melhor ainda, não se pautar pelos artíficos narrativos dos  dramas de superação convencionais.  Muylaert  evita caminhos fáceis, soluções simplistas e maniqueístas. Trata-se de um retrato belo e honesto da realidade de tantas pessoas que almejam apenas uma vida digna e um lugar no mundo, enfrentando as dificuldades do dia a dia. O enredo é envolvente e Regina compõe uma personagem tão cativante que facilmente associamos a tantas figuras que cruzaram nossos caminhos e nos deram uma lição de humildade e coragem.

Muito tem se especulado a respeito de ele ser um provável candidato ao Oscar de filme estrangeiro em 2016. Sua consagração nos festivais de Berlin, Sundance, Lima, dentre outros, embasam esse favoritismo. Mas Que Horas Ela Volta? tem méritos de sobra para ser conferido. O prestígio alcançado em grandes festivais de cinema é, sem dúvida, merecido. Mas é um filme que deve ser visto pelo que ele é, não apenas por conta de sua celebração por especialistas. O longa de Muylaert é um excelente exemplar de cinema nacional que pode ser tanto um soco no estômago como um afago na alma para muita gente. Um grande filme.

Andrizy Bento

3 comentários em “Que Horas Ela Volta?”

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